O Algarve em três desafios, da serra ao mar

Durante uma semana, de 13 a 22 de Abril, o convite vai ser para (re)descobrir as várias naturezas da região. Antecipámo-nos e, em jeito de aperitivo, pegámos nas crianças e fomos passear com burros, procurar as cores da terra e navegar num barco solar.

Foto
DR

Olhares curiosos, pêlo revolto — “por mais que os escovemos, a primeira coisa que fazem é rebolar no chão”, explicam-nos, entre risos —, ruídos atrevidos. À medida que nos aproximamos da vedação que os protege, a curiosidade dos animais intensifica-se e vão-se empurrando uns aos outros para nos verem melhor. Até um pequeno bebé, de olhos ainda tapados pela densa penugem, não resiste em seguir a mãe até à nossa beira, sentido-se talvez protegido pela rede que nos separa do conjunto.

No lugar de Montinho, freguesia de Paderne, Albufeira, a Quinta Elísio dos Burros é refúgio de uma dúzia de equídeos que dedicam as suas vidas a passeios pela natureza e que este ano se estreiam entre as centenas de possibilidades da Algarve Nature Week que, de 13 a 22 de Abril, propõe actividades diversas a preços especiais: pelo menos 20% abaixo do valor de tabela.

Por aqui, o convite é para desfrutar de um tempo de paz, escudados pelos burros, que podem apenas servir-nos de companhia durante a caminhada, mas que estão preparados para ser montados, quer por crianças quer por adultos, quando as pernas começarem a acusar cansaço. São espécimes das raças catalã e mirandesa que, de acordo com a proprietária do empreendimento turístico e sua cuidadora, Sandra Schneider, uma antiga professora de equitação, têm em comum o facto de serem “afáveis” e de revelarem um “temperamento calmo e paciente”. Claro que isso significa que o treino é mais demorado: “Precisam de ser convencidos pelo carinho”, remata.

“Não são animais que reajam bem à rispidez”, explica Sandra, à medida que vai retirando os três animais que nos farão companhia — a mim e aos pequenos Gonçalo e João que, aos nove anos, denunciam o nervosismo de quem nunca tinha estado tão perto de um burro. Da cerca saem dois pequenos catalães — o dengoso Eal, que percebeu estar em boas mãos com o Gonçalo, e o afoito Pedro, que adoptou de imediato o João — e uma mirandesa, a belíssima Jeropiga, que depressa sentiu confiança nas minhas mãos e que, ao longo das quase quatro horas que se seguiram, foi dando sinais de que podia contar com ela para qualquer tarefa.

Foto
DR

Ainda antes de seguirmos por um passeio pela generosa natureza que rodeia a propriedade, há que estabelecer laços. Por isso, munimo-nos de escovas e, cada qual com o seu burro, vamos tirando o pó, ao mesmo tempo que Sandra nos aconselha a conversar com os bichos. É importante que reconheçam a voz e o tom. Este deve ser sempre tranquilo. Por isso, não vale a pena aproximarmo-nos nervosos de um burro, sendo que se trata de um animal adequado para resolver estados de stress. É que este simplesmente não pode existir, sob pena de a “calma e paciência” se transformarem apenas em teimosia — e ninguém quer “discutir” com um burro; ele, invariavelmente, vai ganhar. Depois de algumas voltas, em que aprendemos os sons que incitam os animais a caminhar e a parar, saímos da propriedade num passeio de descoberta no qual, nesta fase primaveril, não faltam cheiros nem cores.

As crianças já estão prontas a montar. Mas ainda há vários metros a palmilhar lado a lado antes disso. Vamos criando uma espécie de hierarquia: há burros que são líderes, outros que se revelam mais confortáveis indo atrás da tropa. Para lá das árvores que rodeiam a propriedade, os campos abrem-se num verde luxuriante. Estamos numa área do Algarve que parece muito distante das praias que lhe dão fama, ainda que chegue até nós uma certa maresia, e ainda a alguns passos da serra de Monchique, que avistamos no horizonte. Nesta zona, forma-se uma espécie de enclave, um jardim  em que nem sequer é preciso semear para florir. As manchas de alfazema e tomilho cedem o perfume à nossa passagem, enquanto as árvores de diferentes espécies proporcionam as sombras desejadas. Há oliveiras, laranjeiras e, por esta altura, amendoeiras carregadinhas. Às alfarrobeiras é que os burros não conseguem resistir. Por isso, vamos parando pelo caminho onde sabemos que os animais terão regalos apropriados, além do descanso merecido.

Um projecto lusitano

Sandra Schneider chegou inicialmente a Portugal, em 2001, para acompanhar o marido, ligado ao sector da hotelaria. Acabariam por adquirir a quinta que hoje habitam em ruínas. Até que lhes foi proposta a ida para a Suíça: “Fomos todos, mas os miúdos nunca se adaptaram.” Foi então que perceberam que era ali, naquela quinta, que deviam criar o seu lar. Daí até terem arrancado com um projecto com burros foi um passo. Sandra está mais ligada aos animais, mas sublinha que a ideia partiu do cônjuge, que sempre sonhara com uma ideia do género, e, entre 2013 e 2015, foram alimentando os alicerces da empresa de animação turística, quer com todo o processo de legalização, quer através da aquisição dos animais, que chegaram na sua maioria adultos. Há ainda o “bebé”, que nasceu no fim do ano passado, e a Amora, cuja mãe morreu quando esta tinha menos de uma semana e foi ali levada “entre a vida e a morte”. Alimentada a biberão e mimada q.b. (“na primeira noite, dormi no estábulo com ela ao colo”), até tem direito a página de Facebook (e fãs não faltam!). “É a minha bebé”, confessa Sandra.

Atraindo os ladrares dos cães à nossa passagem, o passeio segue rumo à aldeia. Paramos no café à beira da estrada, onde é possível “sentir um bocadinho do Algarve autêntico”. Algo cada vez mais procurado por quem chega de fora e, por isso, Sandra conta com alguns hotéis de renome entre os seus parceiros.

Prosseguimos a caminhada até um ribeiro que, estivéssemos nós no Verão, poderia ser um convite a mergulhos. Não sendo, aproveitamos o burburinho das águas para descansar e comer o farnel que a Jeropiga carregou. Enquanto isso, os animais vagueiam à sua vontade. “E não fogem?” Não, não fogem. Até porque o doce das tangerinas que descascamos os impede de ir muito longe.

Talvez tenham sido as tangerinas ou talvez os burros sejam assim com toda a gente. Mas quando nos despedimos os animais reúnem-se junto à cerca, emitindo sons que queremos acreditar que sejam já de saudades. Os miúdos também acusam a cumplicidade: “Nunca mais vou tomar banho; enquanto tiver o cheiro não me esqueço deles.”

As cores do Barrocal

Já sem burros (e, depois de alguma contestação, com banhos tomados), continuamos a percorrer o interior algarvio. Desta feita em Querença, concelho de Loulé, onde Marco António Santos e Susana Calado Martins tropeçaram literalmente na riqueza geológica do chão que pisam.

Foto
DR

O primeiro ligado, por formação, ao Património, e a segunda à História, acabariam por criar a Barroca – Cultura e Turismo, um projecto de mediação cultural ligada à interpretação dos elementos patrimoniais de cada lugar, mas que ganha outros contornos (e cores) numa das actividades que organizam e que também consta do menu da Algarve Nature Week: “Pelas Cores da Terra, um percurso em busca de pigmentos naturais”. “Foi um amigo, ele sim, ligado à Geologia, que nos deu esta ideia, tendo sido uma preciosa ajuda na concepção da actividade e em toda a vertente científica.” Ainda que o início deste percurso tenha sido a tese de mestrado de Susana, que incidiu sobre a produção artesanal de cal no Algarve e que lhe abriu caminho para um enorme potencial por explorar.

Ainda julgamos tratar-se de apenas mais uma caminhada, mas a informação da existência de uma actividade final indicava que ia para lá disso. O mote é aquele que o título indica: ir em busca das cores da terra que, por estas paragens, forma uma paleta variada. A razão, explica Susana de forma muito sucinta para que as crianças possam acompanhar, advém da fusão da Península Ibérica, até então uma “jangada de pedra” à deriva, depois da fragmentação da enorme Pangeia, que terá ocorrido há centenas de milhões de anos, com as fundações do que se conhece por continentes europeu e africano. Do forte embate, as várias camadas de rochas, de períodos distintos, ter-se-ão misturado, produzindo aquilo que observamos hoje quando passeamos por caminhos de terra ou quando avistamos uma estrema em muros improvisados que definem o fim da propriedade de alguém: cores variadas, pedras de diferentes tipologias e idades, como que baralhando o mapa do tempo.

Os nossos passos seguem por caminhos agrícolas, cruzando-se de vez em quando com o quotidiano de quem ainda dedica tempo aos campos, e por outros trilhos que, pelo crescente mato, confirmam o cada vez maior abandono das gentes por estas paragens. Pelo caminho, aproveitamos para recolher qualquer plástico — “tentamos que estes passeios também sirvam para consciencializar, sobretudo os mais novos, para a protecção do ambiente”.

Mas voltemos ao nosso objectivo: encontrar rochas de diferentes tonalidades. Choveu e, por essa razão, não é fácil. No entanto, para a Algarve Nature Week prevê-se bom tempo e tanto Marco e Susana torcem para que o sol brilhe. De qualquer das formas, a caminhada é aproveitada para verificar como a terra revela verdes, ocres e até roxos... E nem tudo está perdido.

Pigmentos na manga

Assim que começamos a conseguir distinguir as cores da terra, Marco retira da mochila o equipamento necessário para elevar a experiência: em sacos etiquetados, amostras de rochas, todas oriundas do sítio onde estamos, e, bem embrulhado e protegido, um almofariz e respectivo pilão. A tarefa que se segue não tem grandes truques: esmagar as pequenas amostras de rocha, reduzindo-as a pó. De seguida, peneirar esse mesmo pó através de uma espécie de gaze muito fina, voltando a repetir todo o processo até se ter pelo menos o equivalente a uma colher de sopa daquele pó. Em dias soalheiros, o processo é repetido várias vezes ao longo do percurso, criando distintos pigmentos. Na nossa experiência, porém, acabamos por nos dar por vencidos pelos teimosos aguaceiros e recolhemos ao espaço da associação, a alguns passos da Igreja Matriz de Querença, para continuar a experiência — ou seja, se planear alguma vez esta actividade e for surpreendido pela chuva, não cancele logo; Marco e Susana têm sempre uma carta na manga para que não se perca pitada.

Foto
DR

Continuamos, assim, a desfazer pequenos calhaus até ficarmos satisfeitos com a quantidade de tonalidades. Ainda que haja mais um truque escondido: pigmentos de outras paragens que prometem tons ainda mais vivos. A partir daqui a ideia é criar tintas, juntando aos pós óleo de linhaça ou azeite (este último, explicam, parece tornar as cores mais brilhantes) e fazer uma “obra de arte”. Ou pelo menos assim esperamos, com muito optimismo à mistura. Mas, depois da caminhada ao ar livre, é impossível não sentir uma certa euforia. Já os miúdos revelam um interesse concentrado nas várias cores que vão criando e usando para pintarem o seu próprio azulejo, que levarão para casa. Pintar, no entanto, não parece ser o que os motiva mais, não desistindo de criar tonalidades diferentes das várias cores, recorrendo à água de cal para clarear ou a pigmentos mais fortes para escurecer.

As mesas da associação, onde trabalhamos, parecem mais secretárias de um laboratório. E por vezes são mesmo: a Barroca é muito procurada por artistas plásticos que chegam interessados nestas técnicas de criar cor. “Há uns tempos tivemos cá uma artista que, de volta para casa, levou as malas carregadas com pedras.” Os pequenos parecem aproveitar a deixa e aceitam de bom-grado trazer saquinhos com diferentes pigmentos extraídos da moagem de rochas distintas. “Para mostrar à professora”, explicam.

Capitães do rio

O Algarve não é só sol e mar, mas também não se esgota nas serras que definem a fronteira com o Alentejo ou no enclave do Barrocal. Há ainda cursos de água doce a descobrir. Desta feita, de forma sustentável e amiga do ambiente, a proposta é para navegar pela foz do rio Arade.

Dada a sua proximidade ao mar e geografia pouco dada a uma defesa fácil, as mesmas condições que hoje lhe dão vida, chamando a si gentes dos quatro cantos do mundo, a localização de Portimão só foi tardiamente ocupada — ainda que haja provas de presença humana desde o período do Neolítico (10.000 a 3000 a.C.), o primeiro foral que fala de Portimão data do século XV, quando D. Afonso V concedeu a criação de uma povoação, na margem direita do rio Arade, junto à foz do mesmo, a pedido de alguns habitantes de Silves, localidade que assumia grande importância quer ao nível económico quer em termos de defesa do território. Em meados do século XIX, Portimão conseguiu conquistar importância à boleia da indústria conserveira, da qual permanece a memória bem enraizada. Hoje, a cidade é sobretudo um pólo de turismo, sendo o terceiro porto em número de desembarques de passageiros de navios-cruzeiro, a seguir a Lisboa e ao Funchal. Quanto a nós, chegamos por terra à Marina de Portimão para iniciar a nossa exploração ribeirinha.

À chegada, Ana Barbosa e Pedro Mestre já estão prontos a zarpar. E nem por isso se detecta qualquer ruído vindo do motor. A razão é simples: quando o casal decidiu abraçar este projecto turístico sabia que queria distinguir-se da demais oferta e assim que houve a possibilidade de adquirir um barco alimentado por uma energia renovável e abundante nesta região, a solar, não hesitaram. “Sabem?”, explica aos dois rapazes, enquanto a embarcação inicia a marcha e chamando a atenção para a ré, “normalmente os barcos deixam um rasto na água; este não deixa nada.”

O sol entretanto abriu generosamente e iniciamos a subida do rio. À medida que Ana explica como a cidade se desenvolveu, chamando a minha atenção para um ou outro edifício, como as ruínas do Convento de São Francisco, construído no século XVI com o propósito de fixar população, Pedro passa o leme aos rapazes à vez. Enquanto um se mantém atento ao curso a seguir (a maré está a vazar e há bancos de areia a evitar, sinalizados pelas bóias), o outro serve-se dos binóculos para verificar se não se aproxima nenhum barco inimigo. Há um, porém. Gigante: o Karla Faye, uma embarcação de pesca com bandeira da Tanzânia, de 54,9 metros da proa à popa, que nos lembra uma enorme bactéria a infectar um qualquer organismo, tal a ferrugem com que parece camuflar-se...

Foto
DR

Não temos nem homens nem meios para o atacar, por isso divergimos a rota para longe deste, prosseguindo uma subida que, por vezes, permite até avistar graciosos flamingos. Não tivemos essa sorte. Mas, mesmo sem danças de aves, vamos recortando as duas margens do Arade, aproximando-as: de um lado, o Forte de São João do Arade, adquirido por privados e recuperado como residência de Verão; do outro, o Forte de Santa Catarina, mandado construir no reinado de Filipe III e actualmente usado como sítio de lazer por quem frequenta a praia da Rocha e a Marina de Portimão.

Aproximamo-nos da barra do porto e, ainda fruto dos temporais recentes, as águas agitam-se e o vento é mais forte junto à “porta” do oceano. Mas nada que os nossos marinheiros de água doce não consigam contornar — com a ajuda de Pedro, claro, que assume o leme e nos guia de volta à placidez ribeirinha.

Os raios de sol que teimam em furar as nuvens dão azo a que tenhamos vontade que o passeio seja interminável. Ou que, pelo menos, dure mais um par de horas. “E no Verão”, sublinha Ana, “ainda gostariam mais — é que estes passeios acabam sempre em mergulhos”, desafiando-nos a regressar. Deixamos a volta apalavrada para meses mais quentes, mas a verdade é que, por nós, voltaríamos já para a semana.

Sugerir correcção
Comentar