Viagem de comboio à quintessência da Índia

Imagens de milhares de deuses e apsaras esculpidas em pedra negra. Arquitectura ecléctica onde o Norte e o Sul da Índia se encontram. Gopurans, mantapas e templos milenares. Uma jornada traçada entre as marcas do esplendor da arte hindu no Karnataka. De comboio.

Foto
Humberto Lopes

Mangalore Junction é uma encruzilhada ferroviária situada alguns quilómetros a norte de Calecute. É uma estação movimentada, um puzzle de plataformas, passagens aéreas e linhas por onde circulam comboios em todas as direcções. Por aqui passam muitos expressos, o de Bombaim, o de Bangalore, o luxuoso Golden Chariot, um dos famosos upper class do turismo ferroviária da Índia.

Ainda não são oito horas, a manhã já está bastante quente e há uma multidão de passageiros nas plataformas, sentados nos bancos e no chão, com uma catrefa heterogénea de bagagens à volta. Pelos carris caminha uma vaca. Nos altifalantes uma voz feminina anuncia chegadas e partidas. De vez em quando, uma composição imobiliza-se no cais e vê-se um rio de gente em movimento e a desaparecer dentro de uma grande e imóvel serpente azul.

Procuro nos painéis o número 17. As diferentes zonas das plataformas estão assinaladas por números: como as composições são muito extensas, quase sempre com mais de vinte carruagens, convém esperar no sítio certo ou fica-se sujeito a uma acrobática correria entre a multidão.

Foto
Miguel Manso

Falta mais de uma hora para o Expresso de Bombaim. Num banco quase vazio, um jovem de óculos redondos e aros finos, ao estilo de Ghandi, tem um livro fechado nas mãos. Na primeira oportunidade lança uma série de perguntas à queima-roupa ao estrangeiro que acaba de se sentar. De onde vem, para onde vai, o que pensa da Índia. É um estudante de medicina na Universidade de Manipal e tem uma surpresa na manga: não associa espontaneamente a nacionalidade do viajante estrangeiro a jogadores de futebol, coisa que até na China é comum, mas confessa a paixão pela escrita de um autor português. E vira o livro, que havia pousado no banco, de forma que a capa fique voltada para cima. O título: Blindness, a versão inglesa de Ensaio sobre a cegueira. Rajiv leu outro livro de Saramago, Balthazar and Blimunda (versão inglesa do Memorial do Convento). “Que outros livros dele vale a pena ler? Quais são os melhores?” E mais perguntas sobre coisas lusas, como o nível de vida e as histórias da expansão marítima, de que a Índia conserva sinais. Rajiv conhece Goa e espera ir ao Ladakh e aos Himalaias quando terminar o curso: “Aqui na Índia não precisamos de passaporte para vermos um país completamente diferente...” Pede desculpa pela língua, que diz ser a de muitos jovens urbanos da Índia, “falamos ‘hinglish’, uma mistura de hindi e inglês...”

Foto
Miguel Manso

É isto: nunca se está só nestas paragens do Oriente: os leitores de Paul Theroux devem lembrar-se bem das histórias lidas em The Great Railway Bazaar e em Ghost Train to the Eastern Star, dois livros em que o autor narra as suas viagens pela Ásia e pela Índia.

Em segunda classe no Expresso de Bombaim

O Expresso de Bombaim costuma ter uns passageiros singulares, os hijrah, que percorrem as carruagens em peditórios, enfeitados com jóias de pechisbeque, coloridos saris e os rostos carregados de cosméticos. Pouca gente abre os cordões à bolsa quando os hijrah regressam para recolher os papelinhos  que deixaram minutos antes. Uns passageiros ficam indiferentes, outros riem-se, jocosos. A comunidade foi recentemente reconhecida como representativa de um “terceiro género”, outro esforço para instituir mais um pedaço de modernidade num país onde resistem seculares e respeitáveis tradições e discriminações, como as que atingem os dalit, os intocáveis. A cultura é pedra dura de moer e asperezas culturais como as das castas têm raízes profundas em narrativas muito antigas do hinduísmo e nas suas representações do mundo. Não terá algum significado que o hinduísmo seja designado, no sânscrito em que os seus livros sagrados foram redigidos, por Sanatana Dharma, que se pode traduzir por “leis eternas”?

Foto
Humberto Lopes

Estas carruagens são amplas, têm três assentos de cada lado. Um pouco decrépitas, mas geralmente limpas — pelo menos no início das viagens. Não há ar condicionado na segunda classe, mas contam-se umas dezenas de ventoinhas que podemos controlar com uns interruptores. Não fazem falta, por enquanto: com o comboio em andamento entra algum ar fresco. O pior é nas semanas que antecedem o início da monção, mesmo se no Karnataka se achem oásis à vista da inclemência climática pré-monsónica. Mas que ganha o viajante em fazer-se escravo do conforto ou dele erigir um deus? Theroux, que alimentou tantas histórias com o que viu e ouviu durante as suas viagens, tem uma teoria: “O conforto é inimigo da observação. Quanto mais confortável se está, menos se vê.” No limite, esta lógica leva o viajante-autor que mais milhas ferroviárias transformou em páginas literárias a produzir um enunciado lapidar: “As grandes experiências são as mais perigosas.”

O Expresso de Bombaim continua a avançar para norte ao ritmo da percussão das rodas nos carris. Do outro lado das janelas passa a vida e o mundo, os arrozais, miúdos a jogar críquete, gigantescos painéis de publicidade a lojas de diamantes plantados ao lado de miseráveis casebres — o melhor cliché dos contrastes indianos —, templos hindus à sombra de palmeiras, florestas, muito verde ainda antes de a monção abrir as torneiras, a cordilheira dos Ghats ocidentais no fio do horizonte. E rios, muitos rios. Abandonamos Mangalore e atravessamos o Nandini, o Shambhavi, o Udyavara. E, mais tarde, o Kundapura, o Chakra, o Sharavathi e o Kali, que empresta o nome a uma das mais importantes reservas de tigres do país, a Kali Tiger Reserve.

Rajiv veio lá da sua carruagem, também de segunda classe, sentou-se no banco da frente e retomamos a conversa. Minutos depois aparece o revisor e o jovem estudante tem de pagar quinze rupias por um suplemento inventado no momento. “É habitual aqui na Índia, quem tem uma farda e poder... aproveita.” Tira depois um jornal da mochila. The Times of India traz uma notícia sobre atribulações dos casamentos intercastas. “Os noivos foram molestados por um grupo de jovens estudantes universitários”, comenta o jovem. “E eram estudantes de direito.”

Foto
Humberto Lopes

A viagem ainda vai no adro e vê-se bem como Monisha Rajesh, jornalista britânica de origem indiana que percorreu mais de trinta mil quilómetros da rede ferroviária do subcontinente e escreveu um livro sobre a aventura, tem razão quando diz que estes comboios são um microcosmos da Índia.

Um apeadeiro no século XIII

Udupi foi o berço de um tipo particular de dieta vegetariana e da dosa masala, um crepe indiano. Mas a razão desta paragem em Udupi é haver nestas partes do mundo um templo velho de séculos. Aos leigos é permitido ir lá dentro espreitar e abrir a boca de admiração, desde que entremos sem camisa e descalços. Camadas de fumo negro agarrado à madeira mostram anos-luz de velas e fogueiras. Anda-se pelo templo, que é labiríntico e sombrio, na intimidade de rituais variados, ao som de tambores e tilintares de sinos e cânticos e mantras. Os cerimoniais parecem intrincados — talvez, como em todas as religiões, para confundir os crentes e reinar sobre as pobres almas tementes da morte e do que não vem em nenhum livro bem explicado. Aqui, um caldo que os peregrinos sorvem da concha da mão; ali, umas sementinhas levadas à cabeça, em gestos que parecem de purificação.

Foto
Humberto Lopes

Lá fora, o que se vê é como uma Fátima non-stop, um comércio de velas e óleos e vasinhos para lamparinas e incensos e calendários e ícones e outras coisas para o consumismo religioso. E mais rituais. O clímax é uma volta dos carros de Jagrená, ou dois engenhos muito semelhantes, pela praça. Vão os veículos, umas torres engalanadas de flores assentes numa base de grandes e possantes rodas de madeira, puxados por uma multidão de crentes (de quem se diz fervorosos), centenas de lamparinas e archotes a arder na escuridão (efeito cénico eficaz desde os tempos da pedra lascada), fanfarras e sinetas, um elefante sagrado (e renitente) a abrir o cortejo, fogo-de-artifício vistoso (porque os peregrinos têm os seus direitos e não fizeram centenas de quilómetros para regressarem de olhos a abanar), petardos no chão, estrondos de assustar generais. E uma trupe de vacas a mirar a cena, indiferentes.

O caso, para um leigo, é de recordar o relato de frei Sebastião Manrique e do que sucedia nas terras do Arracão, mais ou menos onde é hoje a infausta região de Rakhine, na Birmânia, quando o religioso portuense por lá andou no século XVII; desta vez em Udupi não se viu ninguém a atirar-se para debaixo das rodas com ideias de salvar a alma.

Foto
Humberto Lopes

Este litoral do Karnataka tem outra curiosidade, uma aldeia de pescadores à beira de uma praia extensíssima, entre o mar Arábico e palmares infindos, sem turistas exóticos, só indianos e indianas banhando-se vestidas à vista de uns mirones sinceros apreciadores de tecidos molhados. Ao largo, há uma ilha com pedregulhos vulcânicos a que puseram o nome de Santa Maria; e mais conta uma lenda desta terra que o Gama ali foi ter e ali lançou à terra um padrão e rezou o que lhe mandara El-rei e a cúria. Não é verdade que tenha sido ali, mas em Malpe toda a gente anda com essa história na boca.

Um fim de tarde, já quase noite, calhou o regresso a Udupi rolar num autocarro que tinha umas luzinhas a piscar alucinadas à volta de uma imagem do deus Ganesh. Parecia que o condutor tentava acompanhar em alta velocidade o ritmo das luzes, a golpes de volante e ziguezagues que talvez simulassem a mudança das cores. Para um bom conhecimento do modo de conduzir de alguns genuínos indian drivers, é indispensável a gente sentar-se bem lá à frente para (vi)ver as manobras em primeira mão. É realmente assombroso: uma criatura a conduzir assim na Europa causaria uma pilha de acidentes e era até capaz de se matar. Aqui só pode ser uma terapia nacional para o stress de se estar vivo. O motorista, qual faquir rodoviário, entrou na estação de Udupi com a mesma ligeireza e ziguezagueou entre os passageiros-peões até parar. Apeado, imergi na confusão de autocarros, motoretas, riquexós e peões e atravessei o cruzamento com a lentidão de uma tartaruga e sem olhar para o lado. Toda a gente sabe que é a forma mais segura de atravessar uma rua na Índia sem causar um acidente.

Foto
Humberto Lopes

A viagem, uma nuvem sem pressa

Around India in 80 Trains é o título do livro em que Monisha Rajesh descreve viagens de comboio pelo seu país de origem. Este compêndio dedicado ao mundo ferroviário da Índia destaca três itinerários no Karnataka. Um deles é o do Amaravathi Express, que liga a cidade portuária de Vasco da Gama, em Goa, a Horwath, na baía de Bengala, tocando três dos principais recintos arqueológicos da região e da história do hinduísmo: Badami, Patadakal e Vijayanagar. Na escolha do Amaravathi Express pesou para Monisha Rajesh a travessia da cordilheira dos Ghats, percurso semelhante ao que se pode fazer mais para sul, de Mangalore para o interior; um cenário de  montanhas, picos, ravinas, cataratas, florestas densas aclamadas pela sua enorme biodiversidade. O turismo de natureza é outro património de uma região que acolhe alguns dos mais importantes parques do país — como os de Bandipur e Nagarhole — e onde reside um quarto da população de elefantes da Índia e quase um quinto dos tigres.

O Rajdhani Express deveria partir às sete da manhã, mas como vem de Trivandrum, no Sul do Kerala, é possível que circule com atraso: foi o que adiantou um funcionário da estação de Udupi com os dedos a tamborilar sinais de morse no relógio. O atraso deu tempo para comprar o The New Indian Express, leitura para a viagem até Magdaon (a antiga Margão portuguesa) — uma pequena volta para atingir o Norte do Karnataka.

Até Magdaon, a bordo de outra carruagem de segunda classe, a paisagem repete os temas de há uma semana: arrozais, florestas e rios. A estrela do percurso é a travessia do grande estuário do Sharavathi, o rio das belas cataratas Jog, as segundas mais altas da Índia, com mais de trazentos metros de altura.

Estas carruagens parecem mais caquéticas, têm baratas residentes e uma das vezes em que me levantei para desentorpecer as pernas quase pisava uma família de ratinhos que circulava em rigorosa fila indiana. O comboio vai cheio, nos bancos de três acomodam-se seis pessoas, e ao meu lado viaja Abdullah, um muçulmano que me recita durante horas versículos do Corão para ilustrar as suas observações sobre a vida na Índia. A curiosidade pela vida pessoal, familiar e profissional do interlocutor estrangeiro não dá tréguas, obriga-me a responder à cortesia um tanto proselitista do meu companheiro de viagem. Sim, neste microcosmos da sociedade indiana raramente ficamos sós, a interacção faz parte do ethos da viagem. “Um bilhete de comboio indiano é um passaporte para a invasão da intimidade da vida de outras pessoas. O que seria inconveniente em qualquer outro lugar torna-se instantaneamente razoável num comboio”, escreve Monisha Rajesh.

Foto
Humberto Lopes

Desembarcamos em Margão depois do meio-dia. O Amaravathi Express já partiu e decido ficar uma noite aqui para tentar a sorte para o dia seguinte com um dos emergency tickets libertados horas antes das partidas. Para os trajectos de longo curso em carruagens com sleepers é fundamental comprar os bilhetes com antecedência, caso contrário fica-se dependente dos bilhetes de última hora. Uma agência de viagens pode ser melhor do que as bilheteiras das estações — é mais certo encontrar ali quem fale inglês.

Fico em lista de espera e vou dar uma volta pelo centro de Margão, onde o velho casario colonial evoca a presença lusitana e onde não é nada do outro mundo encontrar quem ainda fale português. Antes do anoitecer apresento-me na agência. Mr. Patel sorri: tenho sorte, pode-se arranjar um bilhete a bordo do Amaravathi do dia seguinte.

Mas durante a tarde havia-me rendido àquela lassidão oriental que Albert Cossery exalta nas suas histórias das ruas pobres e ignoradas do Cairo. Porque não ficar uns dias em Margão? Que mal ao mundo e à viagem virá se não arribar tão cedo a Badami ou a Pattadakal? Theroux, a quem acontecia nas suas jornadas ferroviárias fazer planos que depois desfazia, disse um dia no festival de literatura de Jaipur que “um viajante não anda com pressa”. “Muita gente avalia a viagem pela velocidade e pela eficiência. O verdadeiro viajante não está interessado em velocidade e eficiência.” Theroux argumentava que a velocidade e a eficiência também condenam a capacidade de observação. Pode ser ainda pior se tal obsessão fechar os olhos às dádivas inesperadas das viagens de comboio na Índia. Para dizer à maneira de Paul Virilio: a velocidade é o extermínio do espaço.

Badami, Pattadakal, Vijayanagar: nomes do esplendor hindu

O Amaravathi Express saiu de Margão com a promessa de chegar a Hospet, 350km para leste, às 14h50. Entrou na estação com cinco minutos de avanço. Nesta terra é tudo ou nada. Em meia hora se vai de Hospet a Hampi Bazaar, a aldeia ponto de partida para as expedições pedestres através do grande recinto arqueológico da capital do último império hindu, o reino de Vijayanagar.

O grande templo de Virupaksha, com o seu altíssimo gopuran, uma torre de cinquenta metros de altura, é um centro de peregrinação muito concorrido e é primeira imagem forte que se mete pelos olhos do viajante; em muitos quilómetros à volta, nas margens do Tungabhadra, há inúmeros templos bem conservados e abertos ao culto. Por via do marketing, um deles, o Vittala, está ligado ao mais luxuoso comboio do Karnataka, o Golden Chariot, cujo ícone comercial se inspirou na carroça de pedra conservada à entrada do templo.

Tal como o recinto de Hampi, os de Badami e Pattadakal, mais antigos, fazem parte da lista da UNESCO. O que seduz em Pattadakal é a harmonia com que ali se fundiram estilos arquitectónicos do Norte e do Sul da Índia, num tempo em que qualquer tipo de unificação política era uma remotíssima possibilidade, mas em que o diálogo cultural mandava à fava os desconcertos políticos e militares. Em Badami, a uma vintena de quilómetros, repete-se a mesma mestiçagem nos templos escavados nas grutas. Se no périplo se incluir Aihole,  fica o viajante com uma ideia da extraordinária diversidade da arquitectura clássica hindu da região.

Foto
Humberto Lopes

Ao fim de duas semanas no Karnataka, a memória vacila ao turbilhão de imagens de gopurans, de mantapas, de figuras esculpidas na pedra, como as apsaras, as dançarinas celestiais das mitologias hindus. É impossível não pensar como o hinduísmo e as narrativas dos seus livros sagrados, com milhares de deuses e deusas, de heróis e heroínas, lançaram a semente de maravilhosas obras de arte. E mais: afinal, do Oriente não veio apenas a luz, milénio após milénio; quantas fábulas de La Fontaine e de outros contadores de histórias europeus não foram inspiradas, ou copiadas, nas narrativas dessa impressionante colectânea que é o Panchatantra? Quantos provérbios que na Europa (Portugal incluído) passam por ser genuinamente locais não são mais do que reproduções de aforismos há muito (há mais de 2000 anos, pelo menos) inscritos nas páginas do Panchatantra?

Hoysala, histórias de deuses contadas em pedra negra

19h, hora de ponta nas estações ferroviárias indianas. Badami é uma cidade calma, mas o embarque no Golgumbaz Express para uma viagem nocturna até Bangalore levanta alvoroço. A composição é longa, vem a abarrotar de gente desde Solapur, no Maharashtra, traz passageiros para uma enormidade de destinos. Uns ficarão no grande entroncamento de Hubli, para rumarem a Goa ou para leste, para Andhra Pradesh, outros seguirão até Bangalore ou Mysore. O meu sleeper, o mais baixo de uma pilha de três, estava ocupado e com a cortina corrida. Um assistente de bordo veio desbloquear a situação, enquanto no corredor se ia avolumando um engarrafamento de passageiros, bagagens, vozes.

Ao fim de treze horas de viagem, chegamos a Bangalore, cidade também conhecida como a Silicon Valley da Índia graças ao desenvolvimento das tecnologias da informação e à produção de informáticos world-class. São oito da manhã, à saída da estação o ar fresco recorda a altitude da capital do Karnataka (quase mil metros), uma das virtudes da temperada Bangalore, a quinta cidade mais populosa da Índia, com cerca de onze milhões de habitantes.

A melhor cidade da Índia para se viver, dizem os rankings. Bangalore é uma cidade grande, em todo o caso, e a comparação beneficia das vulnerabilidades das outras grandes urbes do país. Arranha-céus, palácios do tempo do Raj, o magnífico paço de Verão indo-islâmico de Tipu Sultan, arquitectura futurista, algumas das melhores instituições de educação e investigação do país, um ambiente universitário e hedonista que faz lembrar as cidades ditas ocidentais. E uma boa colecção de slums — bairros de lata —, digna de uma megalópolis indiana que está entre as vinte maiores urbes do planeta.

Foto
Humberto Lopes

Uma viagem-relâmpago de comboio deixa-me num par de horas em Mysore, a capital cultural do Karnataka, um amável puzzle que junta quase tudo do que o senso comum atribui à Índia. E nada do que lá está é exótico — isto é, no sentido mais credível da expressão, nada é estranho ao contexto. Palácios que evocam marajás e impérios, a colina de Chamundi e o seu templo com raízes no século XII, o sândalo, as sedas, o incenso, as especiarias, a comida picante cortada com iogurte temperado com bagas de romã e uvas, a tapeçaria de flores e frutos do mercado Devaraja. E a gente afável de uma cidade com escala humana e tão distante da vertigem que sufoca outros espaços urbanos do país de Nehru.

Hassan, a pouco mais de cem quilómetros de Mysore, é a última etapa desta jornada aos símbolos do esplendor da arte hindu do Karnataka. Halebid e Belur foram as duas capitais do império Hoysala, o fundamento da sofisticação artística que justifica a bênção da UNESCO, e mereceriam, só por si, uma longa prosa. Aqui a atmosfera parece menos ortodoxa: ao forasteiro pode acontecer, amiúde, ser instado a figurar nas selfies dos peregrinos e a dar autógrafos como se fosse uma estrela de Bollywood.

O templo Hoysaleswara e os seus pares, talhados delicadamente em pedra negra, são relicários da mais apurada arte escultórica hindu do Karnataka e as centenas de figuras em relevo um imenso livro onde se pode ler tanto uma pictórica descrição da vida local no século XII, como as fantásticas histórias dos deuses do Mahabharata e do Ramayana. A Índia está condenada a ser um lugar estranho; aquela que passa por ser a maior democracia do mundo é também a casa de milhares de deuses.

Sugerir correcção
Comentar