Peregrinação: João Botelho acusado de adaptar romance sem autorização

Deana Barroqueiro, a autora de O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto, garante que o realizador retirou do seu livro várias personagens e cenas que aparecem no filme em que conta a história do célebre explorador português do século XVI sem que ela ou a sua editora soubessem que o ia fazer. A escritora pondera processar o cineasta.

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Peregrinação estreou em 2017 e é mais um dos filmes de Botelho em que o realizador adapta uma obra literária DR

Deana Barroqueiro, a autora de O Corsário dos Sete Mares – Fernão Mendes Pinto, está indignada. Na quinta-feira, o jornal Hoje Macau tornou públicas as acusações que a escritora fez ao realizador João Botelho na sua página no Facebook. Barroqueiro garante que o cineasta que em 2017 estreou Peregrinação, filme em que diz adaptar a obra homónima do explorador do século XVI que é o mais célebre dos títulos da literatura de viagens portuguesa, usou, sem a sua autorização, alguns personagens e episódios que não constam do original, mas do romance que a escritora lançou em 2012, na Casa das Letras (chancela do grupo LeYa).

“É mesmo uma adaptação só que o João Botelho esqueceu-se de falar comigo ou com a editora”, disse Deana Barroqueiro ao PÚBLICO esta sexta-feira, acrescentando ainda, como fizera já por escrito na rede social, que, em momento algum, o realizador terá reconhecido publicamente que o seu livro fora uma das fontes de Peregrinação.

Foi quando os leitores de O Corsário dos Sete Mares começaram a dizer-lhe que o livro era melhor do que o filme e que o seu nome aparecia na ficha técnica, nos agradecimentos, que tomou conhecimento do que se passava, conta. Até aí não tinha visto Peregrinação. Resolveu então, e antes de se sentar numa sala de cinema, ler as entrevistas que Botelho dera a propósito do filme e começou a constatar que o cineasta atribuía cenas e personagens que ela criara à obra escrita por Fernão Mendes Pinto e que falava de outras fontes, sem nunca tocar no seu nome: “Ele menciona o Aquilino Ribeiro, menciona o Fausto e não faz uma referência ao meu livro nunca, em nenhuma entrevista, em nenhum artigo.”

Para tornar mais claro até que ponto o seu romance é importante para a Peregrinação de Botelho, a autora exemplifica – Meng, a amante chinesa que aparece em muitas das fotografias de promoção do filme a lavar as cicatrizes das costas de Fernão Mendes Pinto, é uma criação sua, só que Barroqueiro coloca a cena numa aldeia junto à Muralha da China e Botelho transporta-a para Pequim. "Eu estava a assistir ao filme e a ver as minhas cenas com os pormenores todos. Quase que estaria encantada se não estivesse tão indignada. Senti-me violada.”

João Botelho e o produtor de Peregrinação, Alexandre Oliveira, não estão disponíveis para prestar declarações, mas a Ar de Filmes fez chegar ao PÚBLICO por email o seguinte esclarecimento: “Na construção do guião João Botelho inspirou-se em variadíssimos ensaios e referências à obra de Fernão Mendes Pinto. Um deles, efectivamente, foi um livro de Deana Barroqueiro, fonte de inspiração para duas ou três cenas dos episódios na China.”

Barroqueiro contesta, abertamente, esta leitura redutora que a produtora faz das cenas adaptadas do seu romance e elenca vários exemplos, muitos deles também referidos na sua página no Facebook, cenas que resultaram de cinco anos de investigação: o amor e o desejo não correspondidos de Fernão Mendes Pinto por uma chinesa que os companheiros tinham comprado; a filha do capitão que o ensina e ler mandarim; as cenas com as prostitutas, que permitiram “criar episódios cómicos”; a cortesã que fala sobre “o Yin e o Yang no sexo” a Cristóvão Borralho; as referências à rua dos cavalos magros, que era onde se iam comprar as concubinas e as esposas na China; ou o adultério de Joana Aires da Silva com Manuel Freire, que a escritora foi buscar a outras fontes da época, que dão conta de um escândalo semelhante. “Ele fez uma adaptação não autorizada porque não pediu a ninguém”, defende. “As únicas cenas que não estão no meu livro e estão no filme são as da morte do Pinto com a família porque, no meu romance, fiquei com o Pinto no Oriente, em 1577/1578. Também não está a cena das mantas a voarem. São as únicas, porque as de lutas também lá estão.”

Antes das filmagens, continua a mesma nota breve da Ar de Filmes, a produtora tentou contactar a escritora, “mas a verdade é que não foi possível”: “Houve o cuidado de mencionar o nome da autora em primeiro lugar nos agradecimentos do filme e, posteriormente, a produtora foi contactada pela editora do livro em questão para que, em forma de retribuição, fosse possível utilizar imagens do filme para promover a nova edição, ao que simpaticamente acedeu. Sobre o assunto não faremos mais comentários."

De acordo com a autora, durante este processo, Botelho ter-lhe-á escrito uma carta, que a sua produtora lhe fez chegar através da LeYa. Nela o realizador assume ter-se inspirado no romance de Barroqueiro e diz ter tentado contactá-la antes, sem ter insistido o que devia. “Sou o autor do filme Peregrinação e durante meses nesta ‘arte de vampiro’ que é afinal o cinema, li, consultei, adaptei e reescrevi cenas para a minha curta adaptação da vida e do livro de viagens de Fernão Mendes Pinto. Na verdade o seu livro O Corsário dos Sete Mares foi forte inspiração para algumas cenas do filme, as da China”, diz-lhe o realizador que já adaptou ao cinema obras de Fernando Pessoa e de Eça de Queirós, numa carta que começa com uma admissão de culpa – “escrevo-lhe para reparar um mal e, ao mesmo tempo, agradecer tardiamente um bem” – e termina com um pedido de desculpas: “Perdoe-me”.

Da editora de Barroqueiro, os comentários à situação por ela denunciada também chegaram por email, via direcção de comunicação: “A LeYa e a Casa das Letras colocaram-se, naturalmente, ao lado da autora Deana Barroqueiro desde que, há alguns meses, foram detectadas evidentes semelhanças entre o filme e o livro O Corsário dos Sete Mares. Essa posição mantém-se.”

A LeYa não menciona qualquer possibilidade de vir a avançar com um processo judicial no domínio dos direitos de autor, mas a escritora não se coíbe de o fazer: “Não sei se no cinema se considera plágio quando se pega numa grossa parte de um livro e se aplica como guião de um filme… […] Mas eu estou muito indignada e sinto-me injustiçada. Levei cinco anos a fazer investigação, ponho tudo na bibliografia - tenho uma bibliografia extensíssima - e depois vem alguém que se apodera da minha obra e que nem a menciona? Eu não admito isto e, se a LeYa não for para o tribunal, vou eu.”

Deana Barroqueiro, que tem uma já longa carreira como professora, teme ainda que o filme e o que sobre ele disse Botelho, misturando o original de Mendes Pinto com aquilo que saiu do seu romance, possam vir a dar origem a equívocos perigosos: “O [crítico de cinema] João Lopes disse que o filme é muito didáctico para ir para as escolas e é isso que eu, com 35 anos de ensino, me recuso a aceitar. As minhas cenas, que são imensas, vão passar nas escolas como se fossem do Fernão Mendes Pinto? Não pode ser.”

Editado em 2012, O Corsário dos Sete Mares vendeu até hoje, segundo a editora, cerca de 2500 exemplares.

Notícia actualizada às 18h30 para acrescentar a tomada de posição da Casa das Letras/LeYa, editora de O Corsário dos Sete Mares, e outras declarações de Deana Barroqueiro.

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