Somos um país neutral? Até parece que sim

Há alguma justificação para a tomada de posição de Portugal numa questão que nem sequer exigia uma grande reflexão?

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1. Portugal não é um país neutral, graças à sua condição geográfica mas também graças à sua escolha democrática pela Europa e pela Aliança Atlântica. Somos a face com que a Europa contempla os mares, como dizia Pessoa. É essa a nossa condição. Traduzindo politicamente, somos um país euro-atlântico, historicamente aliado da potência marítima e, hoje, um parceiro responsável da NATO e da UE. Como disse já há algum tempo o primeiro-ministro sobre o “Brexit”, a Europa sem o Reino Unido não é aquela a que estamos habituados. Nunca foi. Por isso, a diplomacia portuguesa prefere um resultado do “Brexit” que deixe o Reino Unido o mais próximo possível da Europa.

2. Pergunta seguinte: há alguma justificação para a tomada de posição de Portugal numa questão que nem sequer exigia uma grande reflexão? Deve haver, mas é difícil de entender, de tal modo contraria a nossa inserção estratégica. Primeiro, a posição do chefe da diplomacia portuguesa foi uma enxurrada de palavras, umas a dizer uma coisa, outras a dizer outra, cujo sentido está longe de ser perceptível. O comunicado que anunciava a nossa posição recordava coisas tão óbvias como a aliança indestrutível com os nossos parceiros da NATO e da União Europeia. Até aqui tudo bem. Mas acrescentava o nosso “papel” de fazedores de pontes, próprio de um país na convergência de continentes, com o velho argumento de que não temos inimigos em nenhuma parte do mundo. Não querendo cair em demagogia, é caso para perguntar se Putin é um amigo? Outros esclarecimentos acentuaram a nossa autonomia de decisão, seja lá o que isso for, na defesa do interesse nacional, da NATO e da Europa. Os posteriores esclarecimentos de Augusto Santos Silva na televisão deixaram tudo exactamente na mesma. O argumento principal é a “prudência”. Para quê? Houve, agora, a chamada do nosso embaixador em Moscovo, tentando começar a sair da posição insustentável em que nos colocámos. O último argumento chegou ontem. Disse Ana Paula Zacarias, secretária de Estado dos Assuntos Europeus, que o Governo vai ficar à espera da reunião dos chefes da diplomacia a 16 de Abril para eventualmente tomar novas medidas, já com os resultados da peritagem concluídos. Mais uma vez, o Governo distancia-se da maioria dos seus parceiros, aos quais não resta dúvida sobre a autoria do atentado de Salisbury. A reacção europeia não resulta apenas deste caso recente, mas antes de uma acumulação de acções e provocações contra qualquer norma internacional praticadas por Moscovo contra a Europa. 

3. Algumas desculpas, um tanto ou quanto esfarrapadas, foram sendo acrescentadas à lista. A primeira das quais a eleição de António Guterres para secretário-geral da ONU, graças ao apoio de Moscovo. Qual apoio? O apoio de não estragar a performance de Guterres com um voto contra ou um eventual veto? A Rússia manteve a sua candidata búlgara até onde pôde. Mesmo assim, que se saiba, o secretário-geral das Nações Unidas não fica “preso” aos votos que o elegeram. Fica apenas preso ao seu compromisso com a instituição que reúne todos os países do mundo e que se rege por uma Carta que defende, em primeiro lugar, os direitos humanos e a soberania dos Estados. Além disso, por mais eficaz que seja a diplomacia portuguesa que ajudou a elegê-lo, todos nós sabemos qual foi a primeira razão para ser eleito. Com as audições do Conselho de Segurança aos candidatos realizadas pela primeira vez em público, a distância política, intelectual e de comunicação entre ele e os outros era de tal modo visível que seria muito mais difícil aplicar à escolha as velhas negociações à porta fechada entre as principais potências mundiais.

4. Mantém-se a pergunta: então, porquê? Conhecemos a tentação neutralista das “altas patentes” da nossa diplomacia, talvez uma forma de compensar o facto de serem, ainda hoje, tendencialmente eurocépticas (o que já não acontece com as gerações mais novas). O facto nunca impediu que cumprissem com assinalável competência as orientações de política externa definidas pelos sucessivos governos. E que, aliás, se mantém sem grandes alterações. Também sabemos que Portugal, apesar dos seus laços históricos com vários continentes (muitas vezes sobrevalorizados, diga-se de passagem), só está em condições de defender a sua soberania e os seus interesses no quadro europeu e transatlântico. Seria olhado como um país muito menos relevante se ficasse de fora das duas grandes alianças estratégicas do mundo ocidental.

Outra das justificações para explicar o que aconteceu é uma alegada “cedência” ao PCP e ao Bloco. Também não tem pés para andar. O PCP, cuja visão do mundo está a anos-luz da do Governo (só gosta de países que não são democracias), sabe que a Europa e a política externa ficaram fora do acordo com o Governo socialista. O Bloco é outra coisa: elogiou a posição “prudente” do Governo. Não irá mais longe, porque está já a olhar para 2019 e quer manter-se como parceiro relevante do PS para um futuro governo.

5. Vale a pena também recordar o histórico do PS em matéria de política externa e europeia, que foi até agora sem mácula. Quando, em 1995, Cavaco saiu de S. Bento, a sua visão europeia era ainda bastante limitada, não no que tocava ao euro, mas no que tocava ao mundo. Enquanto o seu chefe da diplomacia, Durão Barroso, preconizava que Portugal devia perceber que as suas fronteiras de segurança estavam na Bósnia, Cavaco opôs-se até ao fim a qualquer envolvimento militar em território europeu, reservando essa dimensão apenas para os PALOP. Só com o governo de Guterres, com uma equipa de luxo nas Necessidades e na Defesa (Gama e Vitorino), o país passou a cumprir plenamente os seus deveres de membro da União e da NATO. Poucos meses depois de tomar posse, Guterres anunciou a participação na missão da NATO para impor a paz na Bósnia, com um contingente de cerca de mil homens. Desde aí, o país passou a participar em todas as missões de imposição ou manutenção de paz, lideradas pela União, pela NATO ou pelas Nações Unidas. A sua reputação europeia subiu em conformidade. A crise da dívida manchou essa reputação mas não pôs em causa a política europeia: manter o país no centro da integração. Assim aconteceu recentemente com a nova “cooperação estruturada para a segurança e defesa” (Pesco). O Governo está hoje a reconquistar a credibilidade e o prestígio em Bruxelas e nas principais capitais europeias. Não havia necessidade desta derrapagem, numa questão estratégica absolutamente fundamental para aquilo que a Europa quer ser no futuro.

6. Há em Portugal uma parte da elite política, intelectual e militar (à direita e à esquerda) que mantém um certo antiamericanismo (e um certo anti-germanismo), preferindo uma visão mais soberanista ou mais africanista da inserção geoestratégica do Portugal depois de reconquistada a democracia. Trump é uma oportunidade para divergir da Europa e compensar esse facto com a aproximação ao grande vizinho do Leste. A tese é que não há Europa sem a Rússia, mas há Europa sem a América. A democracia não entra nos seus cálculos. Mas há outros precedentes ainda que de natureza pragmática. Durante a presidência portuguesa da União, em 2007, José Sócrates realizou duas cimeiras com a Rússia, uma em Mafra e outra em Moscovo, elogiando Putin como um democrata a quem ninguém tinha de dar lições de democracia. Não foi caso único. Chirac fez a mesma coisa quando se opôs, com Schroeder e Putin (o “eixo da paz”), à guerra no Iraque, em 2003.

7. Hoje, o mundo mudou completamente, passando a ser determinado cada vez mais pelas relações de força entre as grandes potências existentes ou emergentes (o que não tem nada a ver com a Guerra Fria). Putin adoptou uma estratégia revisionista, de confronto com a ordem internacional, que pretende recuperar para a Rússia o estatuto de grande potência, pondo em prática o conceito das esferas de influência. Já provou ao que vem: na Geórgia, na Ucrânia, nos Bálticos, etc.. Desta vez, cometeu, talvez, o seu maior erro de cálculo, passando uma linha vermelha que nem a Europa nem os Estados Unidos podiam deixar impune. A União vai ter de definir com urgência uma estratégia comum para enfrentar um país que se tornou uma ameaça para a sua segurança. Qual vai ser o papel de Portugal, depois desta “neutralidade” fictícia? Não é certamente a da ponte. Continuamos à espera de uma explicação que não se limite a um mero jogo de palavras ou à tentativa de emendar a mão. 

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