O carvalho francês e as florestas de terroir

O segredo de um branco ou de um tinto estagiado em barricas de carvalho não está só nas castas, no solo e no clima da região onde são produzidas as uvas. A origem da madeira também é decisiva. Tal como nas vinhas, o conceito de florestas de terroir já entrou no léxico do negócio do vinho.

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Os grandes vinhos, tintos e brancos, estagiam em barricas de carvalho. Ainda não se inventou melhor vasilhame e dificilmente se inventará. A porosidade da madeira permite uma boa micro-oxigenação do vinho, os taninos da madeira ajudam a polimerizar os taninos do vinho e a tosta acrescenta novos aromas e sabores.

Dito isto, escrever num rótulo que o vinho passou 12 meses em barricas de carvalho francês, americano ou russo, novas ou usadas, é como referir que um determinado tinto foi feito de uvas tintas. Só visitando algumas florestas de carvalho, assistindo a todo o ciclo de produção numa tanoaria e provando os mesmos vinhos estagiados em madeiras diferentes se percebe que por trás de cada barrica há história (uma longa história, na verdade) e uma infinidade de pequenos e grandes detalhes que podem fazer toda a diferença no resultado final de um vinho. Como as uvas, nem todo o carvalho é igual. E, tal como nas vinhas, também faz sentido falar em floresta de terroir.

Terroir. Apesar de pequena, esta é a palavra mágica do mundo do vinho, pelo menos no chamado “Velho Mundo” do vinho. Tinha que ser francesa. Como vigneron (vitivinicultor), por exemplo. São palavras que não só soam bem como dizem tudo.

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A França é a pátria das grandes castas, dos grandes vinhos e também das melhores florestas de carvalho. Ao todo, são cerca de 11 milhões de hectares de florestas públicas. Destas, cerca de quatro milhões são de carvalho. A sua gestão (fiscalização, limpeza e venda) é assegurada pela ONF, Office National des Forêts, de acordo com três objectivos: atender às necessidades da indústria e das populações, preservar o meio ambiente e acolher visitantes. Todos os anos, este organismo lança leilões de parcelas de floresta com árvores para abater. Mas cada parcela abatida é substituída por uma nova, que germina de forma natural graças às bolotas das árvores mais velhas. De modo que a floresta nunca entra em défice, sendo explorada de forma sustentável. É um sistema de gestão notável que assenta em práticas seculares.

Entre o nascimento de um carvalho e a utilização da sua madeira para estagiar um vinho podem passar 150 a 200 anos. Um bom carvalho chega a custar mais de 1500 euros e só dá para fazer 10 a 12 barricas de 225 litros, a medida mais fabricada. Mas nenhuma madeira se perde. É tudo aproveitado, até o serrim. Mais: os franceses são tão criativos que até fazem cremes e perfumes com extracto de carvalho.

É o caso do grupo Charlois, empresa familiar com mais de 200 anos que trabalha com carvalho em sectores como o vinho, os caminhos-de-ferro e a cosmética. Proprietário das conhecidas tanoarias Berthomieu e Ermitage, entre outras, produz cerca de 80 mil barricas por ano. Destas, cerca de mil são vendidas em Portugal. O grupo conta com um português na sua administração, Nuno Cadete, que é o responsável pela gestão das duas marcas na Ásia, Europa e América do sul.

O cliente nacional mais antigo é Anselmo Mendes, que chegou a ser representante da marca. Hoje, já não comercializa barricas, mas continua a colaborar com a empresa francesa em experiências com diferentes madeiras, tostas e castas. Depois de uma primeira fase de experiências com a casta Alvarinho, Anselmo Mendes, já em parceria com Diogo Lopes, enólogo residente da Adegamãe, em Lisboa, foi estendendo os testes a outras variedades, como a Arinto, a Alicante Bouschet e a Touriga Nacional. O mesmo vinho era posto a estagiar em barricas de diferentes tanoarias com tostas semelhantes e ao longo do seu estágio ia sendo provado e avaliado. Hoje, com base neste histórico, os dois enólogos, sempre que fazem um vinho, já sabem à partida qual é a floresta, a barrica e a tosta que melhor se adequam ao perfil desejado.

Não é marketing: o terroir da floresta, conjugado com a forma como é feito o estágio e cura da madeira e o seu tratamento final (pré-tosta a vapor e tosta a fogo) fazem toda a diferença. Numa viagem recente a Sancerre, a pátria da Sauvignon Blanc, com uma incursão à floresta de Bertranges e uma visita à tanoaria Berthomieu, pudemos testar o mesmo vinho estagiado em barricas de diferentes florestas e o resultado  foi surpreendente.

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A tosta tem um papel importante, sobretudo nos sabores que acrescenta ao vinho, mas o que é mesmo decisivo é o tipo de grão do carvalho. O impacto da espécie, do solo e do clima na qualidade da madeira é semelhante ao impacto da casta, do solo e do clima no vinho. Diferentes madeiras originam diferentes perfis de vinho.

Por exemplo, os carvalhos da floresta de Nevers, no centro de França, crescem em colinas suaves, em solos ricos húmidos, e têm um grão regular e apertado. É um tipo de madeira que não fornece muita estrutura ao vinho, mas que ajuda a preservar a sua frescura natural, acrescentando-lhe também alguma doçura. A floresta de Allier, por seu lado, apesar de próxima da de Nevers, cresce em solos diferentes e o grão da madeira é ainda mais apertado. As barricas com este carvalho respeitam a fruta dos vinhos e aportam-lhe bons taninos e estrutura. Noutra floresta importante, a de Vosges, no Nordeste de França, já perto da fronteira com a Alemanha, os carvalhos são mais altos e o grão da madeira é mais fino, o que ajuda a suavizar os taninos do vinho, proporcionando ainda uma sensação de boca mais rica.

Próximo de Nevers, a floresta de Bertranges (oito mil hectares) distingue-se das suas vizinhas por estar povoada essencialmente com carvalhos da espécie Petrea, que, devido à natureza dos solos, crescem menos. Mas o seu grão é muito fino e os vinhos são mais puros. Está quase nos antípodas da floresta de Tronçais, na região de Allier. É uma das florestas mais famosas de França. Foi mandada plantar por Luís XIX, para alimentar a construção naval da marinha francesa. Graças à riqueza dos solos e ao clima, de influência marítima, os seus carvalhos são muito altos. Os vinhos estagiados em barricas de Tronçais ganham aromas subtis e uma grande estrutura tânica, pelo que necessitam de longos estágios, para afinarem melhor. Podem ser indicados para castas como a Cabernet Sauvignon ou a Baga, por exemplo. Mas, se a ideia é obter brancos muito precisos e que reflictam sem máscaras a essência da casta, Bertranges pode ser a opção certa. Pelo menos com a Sauvignon Blanc de Sancerre resulta. Vinhos estagiados em barricas novas mostram ao final de alguns meses uma riqueza e uma pureza extraordinárias, sem marcas desagradáveis da madeira. Só vendo e provando se acredita.

A Fugas viajou a convite do grupo Charlois

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