A especial bem-aventurança do anho assado com arroz de forno

Verdadeira comezaina, como lhe chamou Eça, a genuinidade da receita é garantida no Marco de Canaveses. Também graças ao Rebanho da Confraria, que nasceu para abastecer os restaurantes locais com animais autóctones e certificados.

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Nelson Garrido

Com vales e encostas naturais que se espelham nas águas dos rios Douro e Tâmega, farto património histórico e arquitectónico e gentes acolhedoras, Marco de Canaveses atrai também nestes tempos pascais por um motivo muito especial: o anho assado com arroz de forno. Uma receita de tradição muito antiga que, louvavelmente, as gentes locais se empenham em preservar no seu mais genuíno contexto e que, pelo menos aos domingos, é servida em vários restaurantes do concelho.

“Quem nunca provou esse arroz de caçoula, este anho pascal candidamente assado, não pode realmente conhecer a especial bem-aventurança tão grosseira e tão divina, que nos tempos dos frades se chamava a comezaina”, já em seu tempo prevenia Eça de Queiroz.

Uma comezaina que, mesmo sem frades, podemos também hoje associar ao espírito monástico e contemplativo com a visita à igreja de Santa Maria, a jóia branca da arquitectura de Siza Vieira. Não para constatar o abandono de que já vai padecendo, mas antes para apreciar a genialidade da obra e a austera monumentalidade que nos envolve no seu interior.

A curta distância, no centro da cidade, está o restaurante Cancela Velha, também ele já uma espécie de património local, mas na vertente gastronómica. Pode proporcionar até um conveniente passeio a pé, já que por ali há muito mais que o anho assado e o apetite não pode faltar.

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Nelson Garrido

A par do anho e do arroz, também a broa é cozida no forno de lenha, cumprindo os rituais da tradição. É servida em fatias, numa saca de pano branca, a par com os igualmente típicos bicos, um conjunto de três pães de trigo em cornucópia.

Instalado nos fundos de um velho palacete, o Cancela Velha divide-se em duas salas de tectos altos e paredes graníticas confortavelmente acomodadas para receber uns 30 a 40 comensais cada. Ambiente rústico e acolhedor, serviço atento, despachado e eficiente.

Carta de vinhos farta, com destaque para a boa escolha e quantidade (cerca de 20) de Verdes, onde predominam os da sub-região. Também para Douro e Alentejo a oferta é abundante e qualificada.

O anho assado com arroz de forno é preparado apenas às quintas-feiras, domingos e feriados, mas se grelhado nas brasas é servido todos os dias. Também a vitela assada no forno com batatinhas é o outro cartão-de- visita da casa, sendo que no caso de ambos os assados é aconselhável a reserva antecipada, já que a procura é muita e a oferta limitada à capacidade do forno.

O estilo rústico, saboroso e apaladado das comidas fica logo evidente na tábua enchidos (7,80€), com presunto e salpicão, com que iniciamos o repasto. Seguiram-se rissóis (0,6€ a unidade), chamuças (0,80€) e bolinhos de bacalhau (0,60€), de sabor igualmente apurado, secos e apelativos.

A par do bacalhau assado na grelha ou à moda de Braga com cebolada, a oferta de peixes propunha a pescada em tranches ou em filetes. Provaram-se as tranches com molho de marisco (11€), em meia dose substancial e aprovadas com muito agrado. Três nacos do lombo alto — que cuidadosamente informaram ser de congelação — fritos com ovo e farinha, macios e húmidos a decomporem-se em lascas saborosas. Acompanharam com rodelas de batatas fritas, crocantes e escorridas, que rapidamente desapareceram, em sinal de agrado e aprovação.

Quanto às carnes, ao bife, costeletão e naco de novilho, junta-se a oferta da picanha e do anho grelhado, mas os pratos festivos são mesmo os assados no forno que são procurados ao fim-de semana. Como o objectivo era o anho, foi feita a respectiva reserva, mas da vitela no forno de ar atraente e guloso já não foi possível provar, já que se fez rapidamente escassa para as encomendas.

A dose de anho assado com arroz de forno (21€) mantém-se mesmo como a tal “especial bem-aventurança tão grosseira e tão divina” que descreveu Eça. Tudo é feito no forno a lenha, tudo concentra sabores e natureza. As carnes louras e brilhantes chegam à mesa na assadeira de barro envolvidas pelas batatinhas igualmente brilhantes e gordurosas. Ao lado, a caçoula de barro com o arroz que ressuma à gordura tenra da cria e ao aroma fumado da lenha.

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Nelson Garrido

As carnes macias e suculentas como que se desfazem na boca, num sabor ao mesmo tempo rústico e delicado e envolvência de texturas crocantes das capas que se desligam das costelas ao contacto com o dente. É preciso usar os dedos para apreciar e saborear na plenitude. Sorver a envolvência gordurosa das batatas e bagos de arroz, a textura rústica de cada naco de broa, para recuar ao tempo dos frades e apreciar a comezaina.

E esta é mesmo uma daquelas especialidades que só em contexto próprio pode ser apreciada. Desde logo pela exigência do forno a lenha, que tem de ser aquecido a partir da madrugada. Também o anho tem que ser preparado de véspera, untando-se com uma pasta que junta louro, alho, salsa, cebola, toucinho, azeite, especiarias e vinho (verde branco), que vai aromatizar as carnes.

Já para o arroz, é feita uma calda cozendo cabeça e pernis do anho com salpicão, carnes de porco e vaca, que é depois coada. O arroz coze no forno na caçoula de barro, sobre a qual se coloca depois a grelha onde assa o anho.

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