Miguel Augusto Silva: "Não é só ouvir, é mergulhar completamente nos discos"

A Armoniz recupera em edições de coleccionador obras do passado que, por não estarem disponíveis no mercado, o seu fundador, Miguel Augusto Silva, teme correrem o risco de desaparecer da memória colectiva. Fá-lo com rigor perfeccionista, labor de artesão e espírito de investigador.

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Em 2012, uma ideia começou a germinar em Miguel Augusto Silva. Essa ideia chamou-se Armoniz, editora responsável pela reedição, desde 2014, em fidelíssimas reproduções dos originais, de José Cid, Quarteto 1111 e, agora, Blackground Rui Gaudêncio

“Não é só ouvir, é mergulhar completamente nos discos”, diz Miguel Augusto Silva. “Eu ouvi este álbum dezenas e dezenas de vezes, para não dizer centenas, para perceber todos os pormenores, para saber como tinha sido construído, montado, para conseguir estar lá”. Não se pode dizer de Miguel Augusto Silva que seja simplesmente um editor de discos. O fundador da editora Armoniz encara os objectos as quais dedica atenção como repositório de som, naturalmente, mas também como verdadeiro baú de vidas e contextos, cápsulas de tempos e lugares que não podem ser excluídos da música ela mesma.

O disco a que se refere nas frases supracitadas é o agora reeditado Blackground, dos Duo Ouro Negro, lançado originalmente pela Valentim de Carvalho, em 1972. Mas podia estar a referir-se a José Cid (1971), cuja reedição inaugurou em 2014 o catálogo da Armoniz, ou a Quarteto 1111 (1970), o segundo lançamento da editora, em 2016. A nova edição da estreia a solo de José Cid, tal como a reedição do histórico álbum do Quarteto, nasceu desse mesmo desejo, “o de mergulhar completamente nos discos”. Tem sido esse, com rigor perfeccionista, labor de artesão e espírito de investigador, o trabalho de Miguel Augusto Silva na sua Armoniz.

Nascido em 1969 em Vinhais, transmontano descido até à zona de Lisboa duas décadas depois, é um melómano empenhadíssimo e conhecedor. Na juventude, na terra natal, chegou a andar de guitarra às costas a percorrer o circuito de bares de Trás-Os-Montes, como nos contava há dois anos. Em Lisboa, engenheiro informático de formação, desenvolveu um percurso profissional ligado à consultoria, mas não foi por esse passado que nos cruzámos no seu caminho.

Em 2012, começou a germinar nele uma ideia. Entusiasta do passado da música portuguesa gravada, principalmente na área do pop/rock aqui feito na passagem da década de 1960 para a de 1970, sentia que não só esse passado era pouco conhecido (e reconhecido) como corria o risco de desaparecer da memória colectiva. A Armoniz surge então como a forma que encontrou para, obra a obra, criteriosamente escolhidas, combater essa realidade.

Cada edição da Armoniz, exclusivamente em vinil, é uma fidelíssima reconstituição das edições originais, tanto no que à arte gráfica diz respeito, como ao cuidado posto na prensagem e corte de acetato, passando, obviamente, pelo recurso às master tapes originais. E mais: “não imagina a quantidade de catálogos de papel que precisei de ver para descobrir a textura exactamente igual ao original”, dizia-nos Miguel Augusto Silva há um par de anos, quando nos dava conta do processo de reedição de José Cid. E mais ainda: a enriquecer as reedições surgem extensos ensaios escritos por si, acompanhados de material fotográfico, muitas vezes inédito, fruto de investigação em arquivos e em entrevistas com os envolvidos, que contextualizam as obras no seu tempo e que dão conta de todos os dados biográficos relativos à obra e aos envolvidos.

Ficámos a saber tudo sobre o até então esquecido álbum de estreia de José Cid, soubemos mais sobre a obra-prima do Quarteto 1111, descobrimos com a chegada deste Blackground, como explicamos no texto que atravessa estas páginas, factos  que fazem incidir sobre ele nova luz, reveladora. “Perceber onde foram feitos estes discos, porquê e com que motivações. Descobrir o material técnico utilizado, os locais importantes para a obra, as datas exactas em que aconteceu o quê. Tudo isso é extremamente importante”, diz-nos.

Os discos da Armoniz são, como se percebe, edições de coleccionador - limitadas a 500 cópias, numeradas à mão e vendidas a preços que têm oscilado entre os 40 e os 45 euros. “Como editor e produtor, pode ser constrangedor ter tanto trabalho e colocar sempre a fasquia tão alta sabendo que se tratará de 500 cópias”, confessa Miguel Augusto Silva. O fundamental, porém, está no que nos disse há dois anos: “As pessoas não ouviam estes discos e há uma questão de património que é fulcral a este projecto”. O fundamental está nisto que nos diz agora, enquanto nos mostra o reeditado Blackground: “Saber que alguém fez estes discos, discos tão bons, mas de que tanta gente nunca ouviu falar, saber que isto está a desaparecer e que poderia não haver forma de o recuperar?” Pois, isso não pode ser. É por isso que, de tempos a tempos, Miguel Augusto Silva faz uma pausa na sua profissão principal. Fá-lo para meter mãos ao trabalho.

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