Montepio: virar de página inadiável

Igualmente importante é dar espaço a novos protagonistas libertos do passado, que reconstruam a unidade plural mutualista sem exclusões nem anátemas, tal que o novo ciclo de vida do Montepio exige e que não devemos adiar por mais tempo.

Em 2015, ao aceitar o convite para integrar a lista que elegeu a atual Administração do Montepio Geral-Associação Mutualista (MGAM), tive plena consciência de que participava numa difícil transição para abrir novo ciclo de vida associativa. Estávamos em plena crise de confiança entre os associados e junto da opinião pública, com a solvência da Caixa Económica Montepio Geral (CEMG) sob suspeita. O clima associativo era de elevada tensão como o processo eleitoral tornaria bem evidente.

O que vivemos de então para cá ultrapassou em muito as minhas preocupações iniciais. O ano de 2017 viu recrudescer com a maior intensidade a crise de confiança entre os associados e outros stakeholders do Montepio. Os temas da Associação Mutualista e da sua caixa económica não mais deixaram de ocupar muito da atenção dos media até hoje.

Compreende-se. A opinião pública descobriu, fez precisamente um ano na semana passada, que uma associação em que perto de seiscentas mil pessoas tinham depositado parte importante do seu aforro encerrara o balanço consolidado do exercício de 2015 com uma situação menos favorável. A par disso, proliferavam notícias sobre inquéritos judiciais a operações bancárias antigas, processos contraordenacionais a outras antigas e recentes, bem como acerca de conflitos entre lideranças da associação e da caixa económica, que agravaram ainda mais a inquietação geral.

Vivi então a terrível experiência da interpelação direta que muitos nos faziam: “As minhas poupanças estão em segurança no Montepio? Devo retirá-las já?”

Difícil solução bancária

Fui dos que defenderam, logo no início do mandato, quando realizámos um primeiro aumento de capital da CEMG em 2016, a abertura da caixa económica à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) assim que aquela se transformasse em sociedade anónima. A ideia não era original e vinha fazendo o seu caminho. O Governo acabou por subscrevê-la um ano depois, em plena crise de confiança, para diminuir a inquietação geral acerca do Montepio, no que teve efeito positivo imediato.

Como é natural, vozes influentes têm manifestado discordância a este respeito. Mas a participação da SCML é, na minha opinião, crucial por três razões. Por um lado, assegura a presença do Estado na CEMG por essa via, dando conforto aos restantes stakeholders porque aporta potencialmente mais capital e fica a deter uma espécie de golden share implícita. Ao mesmo tempo, ajuda a imunizar a gestão da caixa económica relativamente às turbulências da vida associativa no Montepio. Finalmente, entusiasma outras instituições sem fins lucrativos nacionais e mesmo europeias a participarem neste banco da economia social.

Com uma nova liderança “sem sombra de pecado” relativamente às vicissitudes do último decénio, independente e tão robusta como aquela que o Dr. Carlos Tavares, pelo seu perfil profissional e cívico de excelência, pode assegurar, julgo estarem reunidas as condições para a CEMG sair definitivamente do pântano reputacional, o que os bons resultados de 2017, aliás, já prenunciam, honra seja feita à administração cessante.

Renovar as propostas e a gestão mutualista

Não tenho dúvida alguma sobre a atualidade do mutualismo, mas isso não nos deve iludir acerca da necessidade de renovar as propostas do Montepio no domínio da proteção social complementar, que é a sua razão de ser.

Há novos riscos sociais cuja cobertura nos moldes tradicionais está prejudicada, devido à difícil sustentabilidade das finanças públicas e a insuperáveis falhas de mercado. Nestas condições, as propostas de valor mutualistas, como de toda a economia social, têm oportunidades novas a que devem responder.

As soluções do Montepio têm estado demasiado confinadas aos benefícios financeiros clássicos de previdência e partilha de riscos. As necessidades atuais exigem uma renovada oferta de proteção diversificada e muito mais sofisticada, onde benefícios de natureza não-financeira, especialmente no domínio da saúde, têm lugar fundamental.

Verdadeiramente decisivas para o virar de página que julgo inadiável serão as mudanças no governo e na gestão do Montepio que a revisão em curso do código das mutualidades desejavelmente ajudará a concretizar.

A escala do governo de uma associação tão grande como a nossa pede a introdução da democracia representativa para aumentar a participação em permanência de todos, através dos seus eleitos, na vida do Montepio. De uma assembleia de representantes a eleger democraticamente deveriam sair futuramente todos os órgãos sociais, acabando com derivas plebiscitárias que não são aconselháveis para o bom governo das grandes associações.

Em definitivo, a gestão do Montepio tem de estar sujeita ao escrutínio efetivo do ministério da tutela e, muito especialmente, da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF). A idoneidade dos gestores das poupanças de tantos associados tem de passar a ser validada através do registo prévio junto da ASF que, infelizmente, alguns querem ver adiado. Regras universais de solvência e gestão prudencial transparente devem ser implementadas desde já, com gradualismo mas sem derrogações injustificáveis.

Novo ciclo

No fim deste mês, os associados vão apreciar em assembleia geral o Relatório e Contas de 2017 da sua Associação e as contas consolidadas de 2016 do Montepio.

A este propósito gerou-se enorme controvérsia pública sobre a solidez dos resultados positivos alcançados em 2017, apenas viabilizados pelo contributo da fiscalidade para os mesmos, como tem sido tão discutido na comunicação social. Compreendo muitas das dúvidas suscitadas a este propósito, mas a interpretação vinculativa da Autoridade Tributária sobre o estatuto fiscal do MGAM está feita. No fim do dia, o que conta é dispor-se de um espaço de respiração para a mutualidade dado pela solvência contabilística, e que devemos saber aproveitar para abrir novo ciclo de vida associativa, Devemos, a partir de agora, virar a página dos difíceis anos de crise, sobre os quais só a distância do tempo permitirá fazer, a final, juízo isento.

As divisões entre pelicanos, vividas com tanta virulência desde 2015, não me parecem atuais nem decisivas para a necessária renovação da nossa proposta de valor aos associados. O debate fundamental da hora presente deve convocar-nos a todos para discutir abertamente o que queremos ser no futuro, sem sectarismo nem preconceitos.

Devemos recusar aventuras financeiras desmesuradas e de desfecho incerto, e regressar ao que é a base do mutualismo: a partilha solidária dos riscos para dar mais segurança e qualidade às nossas vidas, necessariamente sob formas adaptadas aos tempos atuais. Igualmente importante é dar espaço a novos protagonistas libertos do passado, que reconstruam a unidade plural mutualista sem exclusões nem anátemas, tal que o novo ciclo de vida do Montepio exige e que não devemos adiar por mais tempo.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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