A fé e a razão na interpretação do Alcorão

Importa trazer o islão a um ambiente de tolerância, ajudando-o a desempenhar um papel construtivo no alargamento do campo de acção de uma sociedade multicultural.

A Comunidade Islâmica de Lisboa está a comemorar os seus 50 anos, com uma série de intervenções e debates, na Mesquita Central de Lisboa, com a participação de académicos (muçulmanos e não muçulmanos) de diferentes áreas, ministros, padres, especialistas em catolicismo e outras personalidades (PÚBLICO de 16.03.18). Para melhor compreensão do Islão em Portugal, importa recordar a sua história e lançar mão de uma interpretação que concilie a fé islâmica com a razão. Mas, esta interpretação, num diálogo inter-religioso, diz respeito também a fé judaica e cristã.

Em 711, a pedido dos partidários dos filhos do rei visigótico, Vitiza, e aproveitando as convulsões que ocorriam na Península visigótica, um exército composto por berberes e árabes do norte de África e comandados por Tarik ibn Ziyad desembarcou em Espanha derrotando as tropas do rei Rodrigo nas margens do rio Guadalete, acabando com a monarquia visigótica. Em cinco anos, toda a Península, com excepção das terras montanhosas do norte, ficou submetida ao poder muçulmano, de tal modo que aos cinco anos de conquista muçulmana vão corresponder quase 800 anos de reconquista, iniciada com a revolta de Pelágio, em 718, e terminada, em território português no reinado de D. Afonso III, com a conquista do Algarve e em Espanha com a conquista de Granada, em 1492.

 Com a conquista da Península, os muçulmanos trouxeram não só a sua cultura, mas também o Alcorão, livro sagrado que, segundo a fé muçulmana, foi ditado por Alá (Deus) ao seu profeta Maomé, compreendendo 6209 versetes, dos quais cerca de 500 tem carácter jurídico. Os seus 114 capítulos (suras) representam para os fiéis muçulmanos a compilação das verdades da fé, dos princípios jurídicos e da gestão da vida pessoal e social. Por isso, o Alcorão, na sua interpretação corrente, não é somente um livro religioso, mas também um código político, moral e jurídico. De tal modo que um ato que transgrida a lei (sharia) é, simultaneamente, pecado, imoral e delito.

Foi dentro deste quadro doutrinário que, no século XII, surgiram os maiores pensadores das três culturas (judaísmo, cristianismo e islamismo) dissertando sobre fé e a razão, na interpretação dos seus livros sagrados: Torá, a Bíblia e o Alcorão. Esses autores são o judeu Maimónides (1135-1204), o muçulmano Averróis (1126-1198), ambos nascidos em Córdova, e o dominicano Tomás de Aquino (1228-1274), nascido em Itália. Perante a relatividade e fragilidade das correntes de pensamento e filosóficas modernas, podemos afirmar que, nas suas linhas gerais, as ideias destes grandes filósofos poderão dar um grande contributo para a análise dos três textos religiosos e para o diálogo intercultural e inter-religioso.

O judeu Maimónides escreveu o Guia dos Perplexos (ou Indecisos) com o objectivo de resolver a contradição aparente entre a filosofia e a revelação, entre a fé judaica e a razão. Os seus “Treze Princípios da Fé” mantêm actualidade enquanto guia elementar de introdução às bases essenciais da fé judaica: um Deus único, a revelação do Sinai, a vida após a morte, a ressurreição e o messianismo.

S. Tomás de Aquino, um pouco mais tarde, entra em debate com os filósofos árabes e judeus, propício para o efeito, uma vez que a Andaluzia muçulmana de Córdova oferecera, no século precedente, um exemplo extraordinário de colaboração entre o monoteísmo e a filosofia.

Os três autores, cada um respeitante ao seu livro sagrado (Torá, Bíblia e o Alcorão) tinham como objetivo principal compreender o sentido dos textos sagrados, encontrar uma hermenêutica que permitisse aceder ao sentido espiritual dos textos, determinando, em seguida, toda a conduta da vida humana.

O muçulmano Averróis, filósofo, jurista (juiz) e teólogo, no seu tratado “Da Harmonia entre a Religião e a Filosofia”, fala de diversos níveis de acesso à verdade. Foi campeão na defesa da filosofia e da razão numa civilização marcada pela revelação do Alcorão, cuja interpretação é decisiva para as questões metafísicas, morais e jurídicas. Um dos textos mais célebres, é o “Fast al-maqat”, ou seja, o “Discurso Decisivo” onde se estabelece a conexão existente entre revelação e filosofia, entre a razão e a fé. Pode acontecer que um versículo do Corão esteja em contradição com outro. Isto demonstra, diz Averróis, que o verdadeiro sentido do Corão não é o sentido evidente ou primeiro, mas um sentido distante, que compete, justamente, ao intérprete encontrar. Para ele, a maior parte do Alcorão será prejudicial se for interpretado literalmente, pelo que a filosofia e a razão humana são necessárias para determinar o seu verdadeiro significado. A “jihad” que erradamente se tem traduzido por “guerra santa”, segundo Averróis (seguido pelo teólogos modernos) significa “o esforço no caminho de Alá”, ou seja, a comunidade, como tal, deve sempre prosseguir o seu esforço para continuar a fazer reinar e estender sobre a terra a palavra justa de Alá”.

Assim, como actualmente o judaísmo e o cristianismo têm tido êxito na construção de uma relação saudável, livre de confrontos e de perseguições, como aconteceu no passado, importa trazer o islão a um ambiente de tolerância, ajudando-o a desempenhar um papel construtivo no alargamento do campo de acção de uma sociedade multicultural. As fontes de referência para guiar e legitimar a conduta quotidiana dos crentes muçulmanos (Corão e Sunna) continuam, em princípio, as mesmas do tradicional. Mas o seu significado e a sua influência podem/devem ser vistos à luz duma interpretação adequada ao nosso tempo. Importante seria também desenvolver uma fundamentação muçulmana dos Direitos do Homem, a integrar na “sharia”, como parte integrante da civilização islâmica, reclamada, aliás, por vários autores e filósofos muçulmanos da actualidade.

 

 

 

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