Amnistia acusa lei antiterrorismo de esmagar a liberdade de expressão

Os acusados dizem que as autoridades espanholas querem que as pessoas “pensem duas vezes” antes de publicar opiniões online, ainda que isso se traduza numa “crescente e perigosa intolerância à liberdade de expressão”, diz a Amnistia Internacional.

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O rapper Nyto foi condenado, por causa da letra das suas canções, a dois anos de prisão e a uma multa de 4800 euros Amnistia Internacional

Em Espanha, há casos em que fazer piadas com vítimas de terrorismo pode resultar em penas de prisão ou multas avultadas – e o número destes casos tem aumentado nos últimos anos, diz a Amnistia Internacional. Segundo a organização internacional, tem havido cada vez mais pessoas “a caírem nas malhas desta lei draconiana que proíbe a ‘glorificação do terrorismo’ e a ‘humilhação de vítimas de terrorismo’”, representando um golpe na liberdade de expressão.

Estas considerações fazem parte de um relatório da Amnistia Internacional intitulado Faz um tweet… se te atreveres: como as leis antiterroristas restringem a liberdade de expressão em Espanha, tornado público esta terça-feira.

Assim, “em nome da segurança nacional”, já foram condenados vários utilizadores das redes sociais, mas também rappers, jornalistas “e até marionetistas”. Em 2016, dois marionetistas foram detidos porque, durante um espectáculo, uma das marionetas levantou um cartaz com um símbolo parecido com o da organização terrorista basca ETA.  

Em causa está o artigo 578 do Código Penal espanhol, que a Amnistia diz ser vago: tal como referido em cima, pode levar à condenação daqueles que “glorifiquem o terrorismo” e “humilhem as vítimas do terrorismo ou os seus familiares”. Em 2011, tinham sido condenadas três pessoas ao abrigo deste artigo; em 2017, o número subiu para 39. Nos últimos dois anos, foram condenadas quase 70 pessoas. Desde 2011, já foram condenadas 119 pessoas ao abrigo deste artigo.

Isto cria um “ambiente em que as pessoas estão cada vez mais receosas de partilhar pontos de vista diferentes e fazer piadas controversas”, lê-se no relatório.

“As pessoas não devem ter de enfrentar uma acção judicial só por dizer, tweetar ou cantar sobre algo que seja de mau gosto ou chocante”, diz o director da Amnistia Internacional em Espanha, Esteban Beltrán, acrescentando que esta lei conduz a uma autocensura e está a “silenciar a liberdade de expressão e a esmagar a expressão artística”, importante na crítica social.

De que foram acusados?

Alguns dos acusados tinham feito publicações humorísticas sobre o assassinato do primeiro-ministro espanhol Luis Carrero Blanco, em 1973. A estudante Cassandra Vera, de 22 anos, foi uma delas: foi condenada um ano de prisão com pena suspensa por “glorificação do terrorismo”, acabando por perder a sua bolsa de estudo. Tentou explicar que o tom das mensagens publicadas no Twitter era irónico, mas as autoridades espanholas consideraram que isso não era suficiente para a absolver – ainda que a condenação viesse a ser anulada em recurso pelo Tribunal Supremo, em Março deste ano. Até uma das sobrinhas de Blanco defendeu Cassandra, dizendo temer uma sociedade em que a liberdade de expressão pudesse conduzir à prisão — por muito lamentáveis que fossem as suas palavras.

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Cassandra Vera, uma das condenadas Amnistia Internacional

Em 2016, antes de sair para ir trabalhar, o advogado Arkaitz Terrón foi preso. Também ele tinha publicado várias piadas no Twitter, uma delas sobre a morte de Carrero Blanco — e diz que foi “tratado como um terrorista” durante o julgamento. “O objectivo das autoridades é fazer com que as pessoas pensem duas vezes antes de expressarem as suas opiniões online”, acredita Terrón, argumentando que também podem estar envolvidas questões de índole política.

Ainda que a ameaça do terrorismo seja real, o relatório refere que grande parte dos casos levados à Justiça diz respeito a organizações que já não estão activas, como a ETA, que anunciou no início deste ano estar na "recta final" e acabar até final do Verão, e os GRAPO, cuja última investida foi em 2007.

Já o realizador Alex García, de 23 anos, entrevistou várias pessoas que tinham sido condenadas por “glorificar” o terrorismo e acabou também a ser acusado, sendo condenado a dois anos de prisão e ficando impedido de trabalhar na função pública durante nove anos. Também o jornalista Boro foi acusado de ter publicado uma frase associada à ETA; defendeu-se dizendo que era uma expressão comum no País Basco, mas foi condenado a um ano e seis meses de prisão.

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O rapper Nyto Amnistia Internacional

Os 12 rappers do grupo La Insurgencia são outro exemplo: foram multados (4800 euros cada), condenados a dois anos de prisão cada e ainda impedidos de trabalhar no sector público por causa das suas letras de canções que “glorificavam” os GRAPO (Grupos de Resistência Antifascista do Primeiro de Outubro), uma organização de extrema-esquerda envolvida no assassínio de mais de 80 pessoas durante a transição da ditadura de Franco para a democracia. Um deles é o rapper Nyto, que refere que usava a música para analisar temas sociais e políticos; agora, teme não conseguir encontrar emprego por ter o seu nome associado ao terrorismo. “Fazer rap não é um crime, publicar um tweet com uma piada não é terrorismo”, lê-se no relatório.  

Este tipo de leis que criminalizam a glorificação do terrorismo existe noutros países, como a França e o Reino Unido e estão também a ser propostas em países como a Bélgica e a Holanda. Se vier a ser definida uma directiva europeia, a Amnistia sugere que não sejam utilizados termos tão vagos como “humilhação” ou “glorificação do terrorismo”, já que se traduzem numa “crescente e perigosa intolerância à liberdade de expressão”. A Amnistia Internacional pede ainda às autoridades espanholas que libertem quem foi preso por causa desta lei quando estavam, “de forma pacífica”, a gozar do seu direito à liberdade de expressão.

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