Trump arrisca tudo e aceita pisar terreno desconhecido com a Coreia do Norte

Pela primeira vez, um Presidente norte-americano aceitou sentar-se à mesa com um líder norte-coreano para discutir a desnuclearização. Mas a parada é elevada e os riscos são muitos. Até Maio, o mundo fica em suspenso.

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Kim e Trump: podemos confiar nesta paz? Reuters/Lucas Jackson

Quase todas as semanas, a Casa Branca de Donald Trump é comparada a um reality-show, sujeito aos humores imprevisíveis de um marionetista com um gosto particular pelo caos. O anúncio de um convite feito pelo líder norte-coreano, Kim Jong-un, para um encontro com Trump – e a sua aceitação – em directo para as televisões, apanhou de surpresa até responsáveis da sua Administração e representa a expansão deste reality-show à principal crise de segurança que envolve os EUA. A jogada é extremamente arriscada e as vantagens não são óbvias.

Em poucos meses, o “fogo e a fúria” que Donald Trump tinha prometido lançar sobre a Coreia do Norte passou à disponibilidade de o Presidente norte-americano aceitar encontrar-se pessoalmente com o ditador norte-coreano. Para trás ficam meses de injúrias e ameaças de aniquilação de lado a lado. O tempo é agora de um diálogo sem precedentes – nunca um Presidente dos EUA teve um contacto directo com um líder norte-coreano.

A vice-directora do Instituto EUA-Coreia da Escola de Estudos Internacionais Superiores da Johns Hopkins, Jenny Town, faz parte de um grupo de analistas que defende há vários anos a necessidade de se construir um diálogo entre Washington e Pyongyang como forma de se evitar uma escalada violenta na Península Coreana. Mas, em declarações ao PÚBLICO por telefone, não esconde a surpresa pela resposta de Trump. “Não esperávamos que a primeira ronda de diálogo entre os EUA e a Coreia do Norte fosse logo uma reunião de alto nível”, afirma.

O convite de Kim para um encontro com Trump não é propriamente uma novidade. Nas últimas décadas, tanto o seu avô como o seu pai tentaram trazer os líderes norte-americanos para as negociações sobre o seu programa nuclear. No final do seu mandato, em 2000, Bill Clinton esteve perto de se encontrar com Kim Jong-il, mas acabou por recuar.

“Esforços anteriores para alcançar a desnuclearização saldaram-se numa combinação entre falhanços em conseguir uma verificação segura [das instalações nucleares] e os subterfúgios norte-coreanos, mas nunca se foi tão longe em dar à família Kim prestígio, ou tratar a Coreia do Norte com o peso estratégico que tem tentado obter há décadas”, escreve o analista do Council on Foreign Relations, Scott Snyder.

À boleia dos Jogos

Trump aceita encontrar-se com Kim – provavelmente algures em Maio – numa altura em que o clima de tensão na Península Coreana parece ter-se dissipado com a reaproximação entre as duas Coreias, à boleia dos Jogos Olímpicos de Inverno. Esta semana, uma delegação sul-coreana veio de Pyongyang com a promessa de Kim de que estaria disponível para discutir a desnuclearização, caso a segurança do seu regime fosse garantida. Terá sido nesse encontro que o líder norte-coreano manifestou o interesse em reunir com Trump.

Jenny Town diz que a suspensão dos testes – que Pyongyang promete respeitar enquanto o diálogo durar – e a promessa de discutir a desnuclearização não davam a Washington outra escolha que não fosse a de aceitar dialogar. “Estas eram as condições que a Administração Trump tinha fixado para levar a cabo a política de pressão máxima”, diz Town, referindo-se à estratégia de Trump de aplicar sucessivos pacotes de sanções para travar Pyongyang. “Se não for para trazer a Coreia do Norte para a mesa para discutir a desnuclearização, então para quê fazer esta pressão?”, questiona.

A notícia do encontro foi bem recebida em praticamente todo o mundo, de Pequim à Europa, passando pela sede das Nações Unidas. O vice-Presidente norte-americano, Mike Pence, disse que o encontro entre Trump e Kim para discutirem a desnuclearização do regime “prova que a estratégia de Trump para isolar o regime de Kim está a resultar”.

Jenny Town reconhece que “as sanções tiveram algum impacto”, mas acrescenta que o desenvolvimento acelerado do programa nuclear norte-coreano parece ter dado uma confiança renovada ao regime para negociar. “Uma das coisas que os norte-coreanos queriam era saber falar sobre a desnuclearização sem parecerem fracos.”

Negócios ou diplomacia?

A grande dúvida é como poderá avançar o diálogo diplomático quando se começa por uma reunião de nível tão elevado. A desnuclearização será o tema central, do ponto de vista dos EUA, mas “não se está à espera que se discutam detalhes, como quais as instalações que [devem ser vigiadas] ou que tipo de supervisão irá haver”, diz Town.

O grande problema é se ambos os lados se mantiverem irredutivelmente agarrados às suas posições. “O risco é se os americanos insistirem na desnuclearização completa como o único objectivo aceitável”, diz ao Asia Times o especialista da Universidade de Kukmin em Seul, Andrei Lankov. Ao contrário de Town, Lankov não encara o encontro entre Trump e Kim com optimismo. “É provável que se torne numa boa pergunta para concursos de história”, ironiza.

Por trás da jogada arriscada de Trump parece estar a convicção de que para lidar com a Coreia do Norte é necessária uma abordagem totalmente diferente da que tem sido seguida. Mas muita desta estratégia depende da confiança que se tem em Trump como negociador. 

Trump é o primeiro a alimentar expectativas elevadas quanto à sua capacidade para alcançar bons negócios mesmo com os interlocutores mais difíceis. Durante a campanha presidencial, chegou mesmo a afirmar não ter problemas em sentar-se com Kim a comer um hambúrguer. O problema é que a diplomacia pode ser um pouco mais complexa.

Há inúmeros riscos associados a um possível falhanço desta negociação. O principal é o de “conceder legitimidade à Coreia do Norte como potência nuclear”, avisa Town. “Se a reunião não correr bem e se ele sentir que não conseguiu os seus objectivos, corremos o risco de ele regressar e dizer algo como ‘bem, tentámos a diplomacia e isso não resultou’. E depois para onde vamos?”

A chave do sucesso destas negociações está nos pequenos avanços que podem ser alcançados. Jenny Town dá alguns exemplos, como a inclusão de alterações aos futuros exercícios militares entre os EUA e a Coreia do Sul, a suspensão de sanções enquanto o diálogo continuar ou até o fim dos insultos de parte a parte. “Há muitas coisas que ambos os lados querem, entre as que têm um valor elevado e um custo político elevado e outras que não têm qualquer custo e um valor baixo, mas podem ser pequenas vitórias nesse processo”, sublinha a analista, que também colabora com o site 38 North.

Tudo isto requer uma preparação minuciosa da reunião, o que parece ir em contramão com a imprevisibilidade e improvisação que caracterizam a Administração Trump. “Ele não tem sido o ocupante da Casa Branca mais disciplinado de sempre”, nota Town.

Até Maio, há vários factores que podem fazer descarrilar todo o processo, como a insistência na aplicação de mais pacotes de sanções, enfurecendo Pyongyang, ou até o simples cancelamento da reunião – cujos pormenores como a data ou a localização estão ainda por definir, embora a Suécia seja um dos palcos apontados. “Isto será um enorme desafio para Trump”, sublinha a analista. “Ele não pode chegar lá, comer um hambúrguer e vir embora.”

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