Centeno escolhe inspector-geral de Finanças para a Santa Casa

Vítor Braz acumula a direcção da IGF com cargo na SCML. Actos da instituição podem ser auditados pela inspecção da Segurança Social, que pertence ao sistema de controlo interno coordenado por Vítor Braz. Ministro afasta incompatibilidade.

Foto
Vítor Braz é inspector-geral da IGF desde 2015, depois de ter estado no Tribunal de Contas Nuno Ferreira Santos

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tem desde Junho um novo nome à frente do conselho de auditoria, o órgão interno a quem cabe fiscalizar a gestão, examinar as contas e acompanhar a execução dos orçamentos. Quando no ano passado Mário Centeno teve de encontrar uma pessoa para aquela função – porque o conselho é liderado por um representante do Ministério das Finanças –, a escolha do ministro recaiu no responsável máximo da Inspecção-Geral de Finanças (IGF), o inspector-geral Vítor Braz.

A decisão de Centeno, tomada por despacho a 14 de Setembro de 2017 (publicado em Diário da República a 27 de Setembro) mas com efeitos a 20 de Junho, coloca o dirigente público numa dupla posição.

Ao liderar a IGF, um serviço responsável por assegurar de forma horizontal o controlo estratégico da administração financeira do Estado, o inspector-geral é, por inerência, o funcionário público que preside ao conselho coordenador do sistema de controlo interno da administração financeira do Estado (SCI). E esta é, por sua vez, uma estrutura da qual fazem parte as várias inspecções-gerais dos ministérios, onde se inclui aquela que fiscaliza a Santa Casa.

Ao acumular as funções na IGF com um cargo na SCML em representação das Finanças, Vítor Braz passou, assim, a fazer parte de um dos órgãos de uma instituição que pode ser auditada – como já foi no passado – pela Inspecção-Geral do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (IGMTSSS). Como esta é uma das entidades que integram aquele sistema de controlo coordenado por Vítor Braz, também o inspector-geral do auditor (a IGMTSSS) se senta no mesmo conselho coordenador presidido por Vítor Braz.

Ao mesmo tempo, a intervenção da IGF no domínio do controlo financeiro é transversal, abrangendo não só todas as funções do Estado como o controlo dos fundos europeus e da administração local. E as suas atribuições permitem-lhe fazer acções de controlo a entidades que fazem parte do universo do Sector Institucional das Administrações Públicas, onde se inclui a Santa Casa (enquanto instituição sem fim lucrativo da administração central).

Confrontados por email pelo PÚBLICO sobre a nomeação de Vítor Braz, tanto o ministro das Finanças, Mário Centeno, como o ministro da Segurança Social, José Vieira da Silva, rejeitam existir qualquer incompatibilidade ou que desta escolha resulta qualquer inibição de a SCML poder ser plenamente auditada pelas entidades de inspecção.

Vítor Braz não é o primeiro nome da IGF a ser nomeado para o conselho de auditoria. Nos últimos anos, o Ministério das Finanças já se fez ali representar por um elemento da instituição, mas não pelo inspector-geral que é ao mesmo tempo presidente do SCI.

De 2009 até meados de 2017, a escolha recaiu em José Henrique Polaco, actualmente inspector de finanças director – uma posição hierarquicamente inferior à da direcção (composta pelos subinspectores e pelo inspector-geral). Mas nem sempre foi assim. Antes de Polaco, de Maio de 2003 até à entrada deste inspector no conselho de auditoria, o cargo estava nas mãos de Nuno Jonet, ex-assessor da ex-ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite (e que não é quadro da IGF).

Desta vez, a escolha foi a de manter a linha dos últimos anos, mas agora com um dirigente de primeiro grau da administração pública (com funções idênticas às dos directores-gerais e secretários-gerais).

Passado na SCML

Centeno refere na resposta ao PÚBLICO que a função na SCML merece uma representação por quem é dirigente superior ou interlocutor directo do ministério. E o nome escolhido, diz, é uma “garantia de rigor e de qualidade para as funções de controlo exercidas”.

Num segundo email onde era questionado sobre as situações anteriores em que o ministério esteve representado por inspectores-gerais da IGF no conselho de auditoria da SCML, noutros órgãos da mesma instituição ou em órgãos de fiscalização de outras entidades “de reconhecido relevo social e sem fins lucrativos”, o ministro não respondeu directamente à pergunta, dizendo que o ministério já tinha explicado “a absoluta legalidade e competência” da escolha. E acrescentou uma observação sem a contextualizar: “Esclarece-se ainda que o sentido das questões colocadas consta, também, de denúncia anónima contra a IGF e os seus dirigentes, a qual já se encontra em fase avançada de investigação pelo Ministério Público, pelo que esta última denúncia [sic] foi remetida igualmente pela própria IGF para aquele órgão de investigação criminal”.

Quadro da IGF, auditor-chefe do Tribunal de Contas de 2009 a 2014 (antes de assumir a liderança da IGF), consultor do Instituto Superior Técnico de 1998 a 2005, assessor nos gabinetes de secretários de Estado dos governos de António Guterres, Durão Barroso e Pedro Santana Lopes, Vítor Braz também já foi vogal do júri dos concursos do Departamento de Jogos da SCML, de 1997 a 2009.

São dez as atribuições do conselho de auditoria, desde o acompanhamento da contabilidade à verificação dos valores patrimoniais da Santa Casa, passando pela tarefa de “emitir parecer sobre a contracção de empréstimos e a emissão de obrigações”. Cabe também ao conselho promover auditorias contratando empresas especializadas “sempre que se mostre necessário e assim seja considerado” importante.

O conjunto de competências ganha relevância num momento em que a instituição começou a estudar a hipótese, ainda não concretizada, de entrar no Montepio com um investimento que o provedor, Edmundo Martinho, chegou a admitir poder ir até aos 200 milhões de euros. E acontece numa altura em que a Santa Casa, cujo departamento de jogos tem um orçamento e conta próprios, se prepara para entrar na exploração de jogos online, com uma posição maioritária (de 54%) na Sociedade de Apostas Sociais, criada há mais de um ano em parceria com a Fundação Montepio Geral, a Cáritas Portuguesa, a União das Misericórdias Portuguesas e a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal.

As razões de Centeno

Às várias perguntas colocadas sobre a escolha do inspector-geral da IGF, o ministro das Finanças respondeu num comentário único onde refere que os dirigentes da função pública podem participar em órgão sociais “quando se trate do exercício de funções em pessoas colectivas sem fins lucrativos”; por outro lado, justifica escolha do dirigente elogiando-lhe a “competência profissional e probidade”, lembrando que o Ministério das Finanças tem historicamente escolhido alguém da IGF.

Vítor Braz, por seu lado, não respondeu às perguntas endereçadas para o gabinete de imprensa de Mário Centeno, para saber se o inspector-geral considera estarem reunidas as condições para a IGF exercer com plenitude uma eventual missão fiscalizadora sobre a SCML e para a instituição ser submetida ao controlo sectorial do lado do Ministério da Solidariedade. O PÚBLICO apenas obteve resposta às perguntas enviadas ao próprio ministro das Finanças.

Centeno afasta a ideia de existirem incompatibilidades, afirmando que, no caso da IGF, nenhuma acção “é objecto de procedimento ou de decisão individual”. A SCML, sustenta, é inspeccionada “em primeira linha” pela IGMTSSS. “Essa Inspecção, bem como a IGF e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, integram o sistema de controlo interno da administração financeira do Estado, que visa a articulação das acções de controlo, para evitar sobreposições e redundâncias”. Os processos de decisão da IGF “assentam em procedimento hierárquico com quatro níveis de decisão, sendo sempre assegurada a inexistência de conflito de interesses, mediante declaração assinada por todos os intervenientes”, podendo ser apreciados “em qualquer fase pelo Comité de Qualidade”.

Do lado do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, liderado por José Vieira da Silva, também “não se vislumbra” qualquer “diminuição das condições de funcionamento da IGF, da IGMTSSS ou do conselho de auditoria”. Foram três as inspecções que a IGMTSSS realizou à Santa Casa desde 2008. Em relação à IGF, o Ministério das Finanças não esclareceu se alguma auditoria existiu desde então.

Salário e acção judicial

O provedor da SCML, Edmundo Martinho, optou por não responder às perguntas colocadas pelo PÚBLICO sobre a nomeação do inspector-geral da IGF, por considerar, segundo a justificação que fez chegar através do seu gabinete de imprensa, que não cabe à Santa Casa pronunciar-se sobre o assunto, pelo facto de o conselho de auditoria ser um “órgão com plena autonomia” e a sua nomeação da “exclusiva responsabilidade de entidades governamentais”.

Além do vencimento como inspector-geral da IGF, Vítor Braz é também remunerado pelo cargo na Santa Casa, com um vencimento equivalente a 25% do salário do provedor. Ao PÚBLICO, a SCML confirmou que todos os membros do actual conselho de auditoria auferem as remunerações autorizadas, mas não esclareceu quais são os valores exactos.

Recorde-se que Vítor Braz, quadro da IGF, assumiu funções como inspector-geral a 1 de Janeiro de 2015, quando deixou o lugar de auditor-chefe no Tribunal de Contas. Alguns meses depois de ter sido nomeado, a então ministra das Finanças permitiu que o inspector pudesse receber a remuneração que auferia no Tribunal de Contas, onde antes estava em comissão de serviço.

O despacho foi emitido em Outubro de 2015 já depois das eleições legislativas e autorizava o dirigente a optar pela “remuneração do cargo de origem”, dando seguimento ao que, segundo Maria Luís Albuquerque então referia, Vítor Braz já pedira antes do despacho da nomeação de Janeiro desse ano.

Perante as dúvidas de interpretação que existiam no próprio Ministério das Finanças relativamente àquela possibilidade, o inspector-geral acabaria por não solicitar que lhe fosse aplicado o vencimento igual ao do cargo anterior – o que significa que o salário que recebe desde Janeiro de 2015 enquanto inspector-geral corresponde, assim, ao de inspector-geral e não ao de auditor-chefe do Tribunal de Contas.

Entretanto, quando o actual ministro das Finanças toma posse, pede um parecer à Procuradoria-Geral da República para que o Conselho Consultivo se pronunciasse sobre algumas questões relativas ao estatuto remuneratório do pessoal dirigente. E a conclusão viria a confirmar o entendimento do Ministério das Finanças, divergente do de Vítor Braz. Um diferendo que ainda não está terminado. O inspector-geral decidiu avançar com uma acção judicial para lhe ser reconhecida a remuneração do cargo de auditor-chefe do Tribunal de Contas. Para já ainda não há uma decisão.

Sugerir correcção
Comentar