A Itália e o destino da social-democracia

O centro-esquerda sofreu uma derrota histórica em Itália. O centro-direita também. A queda dos partidos sociais-democratas já mereceu inúmeros tratados. Falta saber se o centro-direita resiste. Há muitas dúvidas.

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Matteo Renzi destruiu o seu capital político rapidamente ETTORE FERRARI/EPA
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O resultado das eleições italianas distribuiu o mal pelas aldeias. O Partido Democrata de Matteo Renzi sofreu uma derrota histórica, atirando o centro-esquerda para uma crise profunda. As últimas notícias referem um debate crispado entre os que admitem a possibilidade de uma coligação com o Movimento Cinco Estrelas e os que se lhe opõem. O resultado do Força Itália do renascido Silvio Berlusconi, de centro-direita, pôs fim às ambições do empresário, que se deixou vencer pela Liga, nacionalista, que foi um dos seus parceiros menores nos anos em que governou a Itália. É preciso olhar à distância para entender estes sinais.

Já não chega falar da crise da social-democracia europeia, que se acentuou na sequência da globalização dos mercados e da era do neoliberalismo. Já se escreveram inúmeros tratados sobre o seu destino. Quase todos pessimistas. A realidade parece dar-lhes razão. Mas já não chega para se entender a realidade política italiana e europeia. É preciso falar da crise das democracias europeias, onde os partidos tradicionais estão em queda e os extremos em ascensão. E é preciso também perceber que cada caso é um caso, para além das grandes tendências que estão a mudar a paisagem política.

Nos anos 2000, a social-democracia liderava 10 dos 15 governos dos países da União Europeia. A vaga imparável da “terceira via” de Tony Blair parecia ser a resposta adequada ao fim da Guerra Fria e à consequente globalização dos mercados. Em Londres, Berlim, Roma, Madrid, Lisboa ou nas capitais nórdicas, o centro-esquerda parecia ter recuperado do trauma da queda do comunismo, encontrando uma nova fórmula: dar aos cidadãos os instrumentos necessários para enfrentarem os desafios da nova economia, assente na liberalização dos mercados e na revolução tecnológica.

Educação era a palavra-chave. Em 1992, Bill Clinton anunciara o fim do welfare e o início do workfare. Tony Blair construiu o New Labour a partir do legado da revolução conservadora de Thatcher. Venceu as eleições em 1997 por uma maioria esmagadora. Reconciliou o Reino Unido com a Europa. Apesar do Iraque, venceu três eleições seguidas.

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Tony Blair em 1997 Jeff J Mitchel/REUTERS

Em 1998, Gerhard Schroeder rompia com o trauma que deixou o SPD à margem do poder, porque não conseguiu entender os ventos da História, quando o Muro de Berlim caiu, considerando a unificação como um objectivo longínquo. Schroeder anunciou um “novo meio” e lançou uma série de reformas para recuperar uma economia exangue, graças aos triliões de euros transferidos para os Länder do Leste. A globalização era inevitável, a partir do momento em que as economias fechadas ao exterior dos países comunistas (sobretudo, a União Soviética e a China) entraram nos mercados internacionais. As economias emergentes ainda não assustavam ninguém.

A Grande Recessão

Até à brutal crise financeira de 2008, a ideologia dos mercados conseguiu disfarçar os efeitos da globalização nas democracias desenvolvidas. A Grande Recessão que se lhe seguiu e que não poupou ninguém, deixou a céu aberto uma realidade social que tinha deixado para trás os excluídos da globalização, com a deslocalização das empresas e dos empregos, e que tinha atenuado a estagnação dos rendimentos da classe média graças ao crédito fácil que desapareceu.

Entretanto, a mesma globalização dos mercados permitiu às grandes e médias economias emergentes retirar da pobreza extrema centenas de milhões de pessoas. O caso mais relevante foi a China. Tudo começou a mudar nas democracias europeias. A crise financeira interrompeu a bonança do euro, a maior conquista do projecto europeu desde a sua fundação e a resposta à emergência da Alemanha unificada. Os anos da crise europeia desafiaram os sistemas políticos em praticamente todos os países da União.

A segunda “decapitação”

Cada caso é um caso. Em Itália, o ritmo das transformações políticas foi diferente. O sistema partidário italiano foi decapitado pelo fim da Guerra Fria, pondo fim ao “compromisso histórico” que garantia o governo da Democracia Cristã e a oposição do Partido Comunista. A corrupção fez implodir a direita. O Partido Socialista quase desapareceu. Os eurocomunistas conseguiram transformar-se em sociais-democratas e recolher os restos do centro-direita e do centro-esquerda, que ficaram órfãos, depois da implosão do velho sistema. Antigos comunistas, como Massimo Dalema, aceitaram com entusiasmo as regras da “terceira via”.

Do outro lado do espectro partidário, Silvio Berlusconi, um dos homens mais ricos de Itália, criou de cima para baixo um partido de centro-direita, o Força Itália, ocupando o espaço deixado vazio pela democracia-cristã. Governou por três vezes a Itália, pondo os analistas a pensar como era possível a um país rico e sofisticado rever-se num líder populista que desprezava as convenções.

As culpas foram atribuídas à incapacidade do centro-esquerda de pôr termo às guerras intestinas e aos velhos tiques políticos de outros tempos, que minaram a sua credibilidade junto dos eleitores. Cheiravam demasiado a uma elite mais preocupada com a sua sobrevivência do que com a sobrevivência do país.

Berlusconi foi afastado em 2011, quando a crise do euro ameaçava a Europa e a pressão de Berlim se tornou insustentável. A Europa ainda garantia o mínimo de racionalidade ao sistema. E isso parecia bastar. O problema foi que a economia estagnou. Romano Prodi ainda conseguiu que os italianos fizessem os sacrifícios necessários para estar no euro desde o primeiro dia.

A Grande Recessão afectou a economia de forma brutal, obrigando-a a salvar o seu sistema financeiro in extremis. Não havia dinheiro que chegasse para “resgatar” a terceira economia do euro. Mario Monti, um tecnocrata de grande prestígio que foi comissário europeu e a quem, em 2012, no pico da crise, foi entregue o governo de Roma, não durou muito.

Em 2014, Matteo Renzi fez a sua entrada triunfal na liderança do PD, afastando a velha guarda. Jogou no tudo ou nada e ficou com nada. “A capacidade de Renzi para destruir o seu capital político foi extraordinária”, escreveu a Spiegel na altura em que perdeu o referendo para alterar o sistema político italiano.

O seu sucessor, o discreto Paolo Gentiloni, conseguiu afastar a Itália de uma crise bancária que teria sido um desastre para a Europa. A economia começou a crescer, mesmo que devagar.

Berlusconi ressuscitou. Por pouco tempo. No dia 4 de Março, os eleitores não se limitaram a derrotar o PD. Derrotaram-no também a ele. O centro cedeu. Ganharam os populistas do Cinco Estrelas, reconvertidos às boas maneiras, liderados por um jovem de 31 anos que deixou para trás a mensagem antieuropeia, num país que, apesar de tudo, não quer sair do euro (apenas 15% admitem essa hipótese), mesmo escolhendo partidos que defendem ou já defenderam o contrário. A Liga, nacionalista, que serviu de aliado menor a Berlusconi, venceu-o. É um partido de direita de forte de raiz nacionalista e xenófoba.

Um populismo do centro?

O caso mais curioso é o do Cinco Estrelas, a quem alguns analistas já chamam de “populismo do centro”, defendendo que se lhes deve dar uma oportunidade. O seu programa incluiu uma série de medidas que não se distanciam muito de um programa de centro-esquerda, preocupado com os que ficaram para trás.

Alguém vai ter de governar a Itália. O maior problema é o efeito que a queda dos partidos do sistema possa ter na Europa. “Uma Itália instável e eurocéptica pode ainda colocar um travão nos planos franco-alemães”, diz Charles Grant, director do Center for European Reform de Londres.

Lidar com a globalização

O SPD nunca mais conseguiu recuperar do erro fatal que cometeu quando caiu o Muro de Berlim e a unificação se tornou imparável. Acreditou que era um processo para muitos anos. Ganhou o poder em 1998. Perdeu-o em 2005. Viveu os últimos anos a culpar Gerhard Schroeder pela sua queda eleitoral. O que não o impediu de coligar-se com a CDU da chanceler e repetir a dose em 2013 e, uma vez mais, agora. Teve o seu pior resultado de sempre nas eleições de Setembro, declarando que não iria para o governo. Mas a pressão europeia foi mais forte.

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Gerhard Schroeder, na campanha eleitoral de 2004 Ina Fassbender/REUTERS

Apesar da sua quarta vitória, Merkel também registou o pior resultado de sempre do seu partido. Ambos vão tentar fazer das fraquezas forças, diante de uma paisagem política que não conseguiu evitar o contágio da fragmentação e do nacionalismo: a extrema-direita entrou no Bundestag; os liberais encostaram-se à direita, os Verdes, que chegaram a ser vistos como o “substituto” natural do SPD, viram as suas bandeiras ambientais adoptadas pelos outros partidos. “Quando Martin Schulz apela à justiça social ninguém o contraria. Mas também ninguém diz: Yes! Com entusiasmo.”

Tony Judt, numa das últimas obras que escreveu, justamente sobre a social-democracia, diz que ela estava a transformar-se na “social-democracia do medo”. O medo de perder tudo. Os populistas estão a ser mais eficientes. A Economist escrevia recentemente que, na Europa, “os populistas estão a ganhar votos oferecendo um welfare mais generoso”.

Em França, Emmanuel Macron destruiu de um só golpe os dois partidos centrais que governaram a V República: os socialistas e os republicanos, na sua última versão criada por Nicolas Sarkozy. Os números parecem inacreditáveis, mas não é bem assim. Os socialistas, que ganharam em 2011 as presidenciais e as legislativas, caíram para 6,7% nas presidenciais de 2017 e um pouco mais nas legislativas. Há um número impressionante mas enganador: perderam 249 dos 280 lugares que tinham no Parlamento. Mas a maioria dos seus votos e muitos dos seus eleitos nas legislativas ficaram com Macron e o seu partido de centro-radical. O Presidente francês venceu as eleições sem a mínima cedência ao discurso contra a globalização, contra os imigrantes ou contra a Europa.

Sarkozy e Hollande são águas passadas. A Frente Nacional está em crise. Os Republicanos encostaram-se à agenda nacionalista de Le Pen, à procura de um espaço e de um papel que ainda não encontraram. Macron abandonou a velha dicotomia, da qual a França tem a patente, entre direita e esquerda, preferindo aquela que opõe a abertura ao fechamento. Para ele, o futuro da França confunde-se com o futuro da Europa. Trouxe uma alma nova ao centro-esquerda europeu. Tinha 39 anos quando entrou no Eliseu. Junta-se a uma nova geração de líderes que estão a marcar, para o bem ou para o mal, a política europeia.

Na Áustria, o novo líder dos conservadores, um jovem de nome Sebastian Kurz, de 31 anos, conseguiu levar o seu partido à vitória, aliando-se ao partido de extrema-direita para governar o país. A economia está em alta, o que não serviu de nada ao líder dos sociais-democratas, Christian Kern, o responsável por este sucesso económico. A imigração, mais uma vez, é o factor que determina a escolha dos eleitores. Kurz assumiu parte do discurso contra a imigração, sobretudo islâmica, do seu parceiro, sem deixar de colocar a Europa como prioridade.

Pierre Rosanvallon, historiador e sociólogo francês, autor de uma obra que ficou famosa sobre o fim do Estado-providência (1982), defende que o desafio do centro-esquerda é recuperar o valor da igualdade, que os anos do neoliberalismo fizeram esquecer. É um caminho. Mas hoje, mais do que o centro-esquerda, são as democracias europeias que estão em crise.

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