Também com a Beyoncé o feminismo chegou mais longe?

O feminismo está na ordem do dia — entrou em erupção. Mantém as reivindicações das últimas décadas, mas as mais jovens trazem novas formas de pensar o movimento.

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Alexa Santos encontrou no feminismo “uma forma de ler o mundo” Rui Gaudêncio
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Sara Anselmo: “Quando começamos a crescer, vemos que as coisas não estão conquistadas” Miguel Manso
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Patrícia Vassallo e Silva: “Estas mulheres [da Triumph] deram-nos muito mais do que nós a elas” Sebastião Almeida

Patrícia Vassallo e Silva, 32 anos, já estava habituada a ser uma mulher entre homens. Electricista de profissão, desde a formação que ouvia habitualmente comentários pejorativos. A situação incomodava-a, mas o que fazer? Até que, há cerca de três anos, encontrou uma cliente diferente: uma feminista. Durante o serviço daquela manhã falaram sobre a discriminação que Patrícia sentia. E percebeu que não tinha que ficar calada. Algum tempo depois, já em 2016, criou o colectivo feminista Por Todas Nós. Não foi a primeira nem a única que nos últimos anos decidiu agir.

O feminismo está na moda — está em todo o lado —, mas a sua mensagem não se esgota em frases estampadas nas t-shirts das lojas ou em discussões nas caixas de comentários nas redes sociais. O PÚBLICO falou com mulheres de várias idades, com várias experiências de activismo, sobre como navegam por este momento de mediatização das reivindicações dos direitos das mulheres. Um momento de “erupção”, define Manuela Tavares, que há dez anos defendeu a tese de doutoramento Feminismos em Portugal (1947-2007). “Em cada momento de erupção há coisas que ficam e que se transformam”, explica.

O que não quer dizer que nos momentos menos visíveis o movimento não tenha estado “a fervilhar”, salvaguarda a activista da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta. Manuela Tavares encontra algumas diferenças entre as feministas da sua geração e as mais jovens. “Na minha geração apostávamos no slogan, íamos para a rua reivindicar esta ou aquela causa. Para elas, as causas estão mais entrelaçadas.” Além disso, as novas gerações são “mais frontais” e confiantes. “Lidam bem com questões como a transexualidade, com questões ligadas à forma como a comunicação social gere a igualdade de género, com a ligação da arte com os feminismos”, enumera.

É também assim que vê Alexandra Santos, 31 anos, autora do blogue Queering Style. Para Alexa, como prefere ser chamada, o feminismo é “uma forma de ler o mundo”, que descobriu quando fazia um mestrado em Género, Sexualidade e Teoria Queer, no Reino Unido. Em Lisboa, tem estado presente em vários colectivos e iniciativas, ouvindo os pontos de vista das outras mulheres e trazendo também “o feminismo que acha importante”. Reconhece que o diálogo nem sempre é fácil. Mas considera importante “provocar pensamento” em temas como as identidades e expressões queer.

Outras abordagens encontram um consenso mais fácil. Além da prioridade às desigualdades no trabalho e na vida doméstica, a violência de género e o assédio, há uma atenção cada vez maior dada à “interseccionalidade” — expressão cunhada pelas feministas negras há cerca de 30 anos sobre o modo como as diferentes discriminações se cruzam e se multiplicam. Trata-se de reconhecer que mulheres pobres, negras, ciganas, lésbicas, trans, imigrantes e mesmo as trabalhadoras do sexo têm preocupações específicas, que não podem ser esquecidas ou ignoradas.

Sara Anselmo, de 20 anos, estudante de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa escolheu a UMAR para fazer a cadeira de voluntariado curricular, onde está envolvida no projecto “Múltiplas Discriminações”. Já tinha ouvido falar sobre as reivindicações das mulheres nas aulas de História, mas pensava que eram já direitos adquiridos. Hoje sabe que não é bem assim. “Quando começamos a crescer, vemos que as coisas não estão conquistadas.”

Sara descobriu a palavra feminismo em 2015, através do Twitter, onde continua a defender os seus pontos de vista. Apesar de reconhecer a importância de sair à rua para reivindicar direitos, considera que as redes sociais são por vezes subestimadas, que há quem torça o nariz a estas formas de activismo por as considerar pouco comprometidas. “Há sempre alguém que está a ler o que estou a escrever, não é a ficarmos caladas que as coisas mudam. E o caminho faz-se destes pequenos gestos no dia-a-dia”, defende.

Não há uma forma única

As palavras-chave são cada vez mais: colaboração, trabalho em rede, solidariedade e sororidade – a união entre as mulheres. Foi assim que Carolina Moreira, de 31 anos, chegou à República das Marias do Loureiro, em Coimbra, onde em 2010 encontrou um espaço seguro e onde também descobriu o que era o feminismo. Pouco tempo depois, passava por Coimbra o projecto Rota dos Feminismos contra o Assédio, um grupo itinerante da UMAR que correu o país em 2011. Carolina, que ajudou a fundar o núcleo desta ONG em Coimbra, juntou-se mais tarde ao movimento internacional Marcha Mundial das Mulheres, e em 2015 partiu para o Curdistão para se juntar a uma caravana que correu vários países e terminou o seu percurso em Lisboa.

O activismo passou a ser também trabalho, ao participar em projectos da UMAR com jovens mulheres. Nota que o feminismo já é mais aceite e que há mais consciência de que não existe uma forma única de ser feminista. Está na moda. Mas “não basta ser moda. É preciso desconstruir comportamentos e preconceitos”, ressalva. Alerta para o perigo do purplewashing (“lavagem lilás”, uma expressão que remete para a cor que simboliza o movimento feminista), quando as empresas começam a usar as questões de género com interesses comerciais, o que, para si, é “passar um verniz por cima das desigualdades”. Mas, apesar das ressalvas, reconhece a importância de que o tema seja falado por figuras públicas. “Trabalhando com jovens é que reparamos a forma como a Beyoncé influencia as meninas e a forma como elas já nos vão ouvir porque têm como referência a Beyoncé, a Emma Watson ou a Angelina Jolie.”

Já lá vão mais de três anos desde que Emma Watson fez um discurso na ONU para lançar o movimento HeForShe, ou desde que Beyoncé incluiu na música Flawless um excerto da TED Talk de Chimamanda Ngozi Adichie, onde a escritora nigeriana relembra que “feminista é uma pessoa que acredita na igualdade social, política e económica entre os sexos”. Contudo, a experiência internacional de Carolina Moreira, assim como o contacto com companheiras de outros países através da plataforma Assembleia Feminista de Coimbra, leva-a a situar o início da actual “erupção” do feminismo em 2016, quando as mulheres da América Latina se levantavam para gritar “Ni Una Menos” (“nem uma menos”), na sequência da morte brutal da jovem argentina Lucía Pérez, que despertou uma reacção de repúdio internacional.

Em Portugal, também em Junho desse ano as mulheres saíram à rua em solidariedade com uma adolescente brasileira que tinha sido vítima de uma violação colectiva no Rio de Janeiro, sob o mote “Por Todas Elas”. Mas não era um protesto só sobre o Brasil. Em Lisboa e no Porto gritava-se “mexeu com uma, mexeu com todas”. Não era um problema “delas”, das outras: Nascia aqui o colectivo Por Todas Nós. No ano seguinte, no Porto, crescia a plataforma Parar o Machismo, Construir a Igualdade, que levou centenas de mulheres às ruas tanto em Janeiro, na marcha anti-Trump, como na manifestação de Outubro em frente ao Tribunal da Relação do Porto, incentivando activistas em outras cidades do país. Nas contas de Patrícia Martins, uma das fundadoras da plataforma, nesse ano houve “mais de 20 mobilizações por todo o país” com foco nos direitos das mulheres, alertando para a “urgência de se mudar a consciência social” sobre a violência de género.

Solidariedade e colaboração

Para Patrícia Vassallo e Silva ocupar as ruas é imperativo para que as reivindicações tenham mais impacto, e mais pessoas tenham contacto com as mesmas. Em Janeiro deste ano, em pleno protesto das trabalhadoras da fábrica da antiga Triumph, Patrícia estava lá. Criou um evento no Facebook, reuniu alimentos, juntou-se a colegas do colectivo Por Todas Nós e acompanhou as mulheres na vigília. “Foi uma experiência muito marcante. Estas mulheres deram-nos muito mais do que nós a elas.”

À frente da fábrica em Loures esteve também Rita Ferro Rodrigues, uma das fundadoras da plataforma Capazes. A apresentadora de televisão não tem dúvidas sobre o debate em torno da igualdade de género: “Isto é uma revolução.” Rita Ferro Rodrigues é uma das figuras públicas que mais activamente se coloca a favor de causas feministas nas redes sociais, onde já esteve no centro de várias polémicas. Há muitos que discordam da sua forma de defender o feminismo. Contudo, a apresentadora considera que estes focos de resistência, em particular dos que ridicularizam o movimento, já não serão um entrave ao avanço da igualdade. “Não podemos parar o vento com as mãos.”

A plataforma procura atingir as jovens dos 14 aos 19 anos, “idades determinantes” para formar consciências sobre a desigualdade de género. Rita Ferro Rodrigues dá conta de outros projectos das Capazes: um livro para ser lançado no final do ano, “um bê-a-bá do feminismo”; e um projecto no Alto Alentejo, que deverá arrancar ainda este mês, que envolverá sessões de sensibilização para diferentes camadas da população.

Envolver a comunidade para quebrar resistências profundas é precisamente o foco da Coolabora, uma cooperativa de intervenção social na Covilhã com serviços como centros de apoio a vítimas de violência. Graça Rojão, uma das fundadoras, conta que no final do ano passado, em conjunto com outros grupos da cidade como a Guerrilha Feminista, identificaram algumas dezenas de casos de assédio e violência sexual e assinalaram os locais onde aconteceram com mensagens nas paredes. “Isto põe as pessoas a reflectir sobre a dimensão da violência.” E essa reflexão, reforça a socióloga, tem de ser feita em conjunto. “O machismo é de tal forma uma ideologia dominante que nos atinge a todos e a todas. Não é uma questão de nos colocarmos contra os outros, a mudança tem que começar também por nós”, declara.

As mentalidades foram mudando lentamente, acompanhadas por políticas públicas e alterações legislativas que respondiam às reivindicações feministas, como tornar a violência doméstica um crime público, em 2000. Manuela Tavares recorda a última grande “erupção”, com a campanha para o referendo que permitiu a legalização do aborto em 2007. E o movimento continuou a fervilhar: mais iniciativas, mais presença em protestos na rua, uma maior atenção a acontecimentos nacionais e internacionais. Nesta quinta-feira, no dia das mulheres, pessoas por todo o país juntam-se em tertúlias ou saem às ruas para cantar: “O feminismo está a passar por aqui.”

Nesta quarta-feira, 7 de Março, no auditório do PÚBLICO, em Lisboa, estarão Manuela Tavares, Alexa Santos, Catarina Marcelino e Margarida Balseiro Lopes para debater sobre “À procura de novos feminismos”.

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