Até nas escolas “há uma tendência para segregar” os ciganos

Maria José Casa-Nova, a nova coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, aguarda levantamento feito pelo Ministério da Educação sobre a frequência escolar e planeia estudar bons e maus exemplos.

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Maria José Casa-Nova, coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas ADRIANO MIRANDA

Mestre em Educação Intercultural pela Universidade do Porto e doutora em Antropologia pela Universidade de Granada, Maria José Casa-Nova é professora na Universidade do Minho. A sua investigação cruza educação, género e etnicidade. Em Janeiro, suspendeu a vida académica para assumir as funções de coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas.

Investiga as comunidades ciganas desde o início da sua carreira. A realidade é muito diferente do que era quando começou, em 1991?
Naquela altura, mesmo para as crianças fazerem o 4.º ano de escolaridade era difícil. As raparigas de 20 anos tinham a 1.ª ou a 2.ª classe. Havia algumas com a 4.ª classe, mas poucas. As mulheres de 30, 40 eram analfabetas. Agora, apesar de tudo, eu diria que 99% da população cigana cumpre os primeiros quatro anos de escolaridade. E estamos a assistir a um aumento da frequência escolar noutros níveis de ensino. Neste momento, já temos várias jovens ciganas no ensino superior. 

Havia uma barreira…
Havia uma barreira, mas foi quebrada. Muitas diziam: “Eu quero ir, mas não quero ser a primeira.” Era um medo, ainda que simbólico. Como é que iam ser perspectivadas pelas próprias comunidades? Agora, têm exemplos. Há várias jovens que são licenciadas e que não deixaram de ser ciganas.

É correcto dizer que o acesso à educação da população cigana é uma questão de género?
Do ponto de vista do género masculino não há impedimento da continuidade do percurso escolar. Os jovens estudam enquanto querem. Do ponto de vista do género feminino é que ainda há um impedimento relacionado com o facto de ser nas mulheres que reside a honra das famílias. Há aqui outra dimensão. Os casamentos exogâmicos não são perspectivados de uma forma positiva pelas comunidades ciganas. Acham que pode haver perda de identidade cultural. Recordo-me de uma jovem de 16 anos que me dizia: “Eu quero continuar a estudar, eu quero ser professora de Matemática, mas não vou deixar de ser cigana. E vou casar com um cigano. Isto não é racismo. É que é outra cabeça.” O que ela queria dizer é que se se casasse com um não-cigano ele teria outra estruturação mental, outro universo cultural, e que isso seria de difícil compreensão.

A preservação cultural pesa mais às mulheres...
Elas são mais vigiadas. É nelas que reside a preservação cultural. Isso faz com que haja nela um conservadorismo que vem deste receio de quebrar barreiras que sejam censuradas pelas comunidades.

Diz que o casamento exogâmico é encarado como uma possibilidade de enfraquecimento da cultura. E a escola?
Nunca em nenhum diálogo que tive nestes anos todos a escola apareceu como sendo um problema. Os pais diziam frequentemente que a escola era para ensinar um tipo de conhecimento que eles, pais, não conseguiam ensinar aos filhos e que a cultura seria ensinada por eles.

Como é que se pode resolver a tensão entre a obrigação de ir à escola e esta ideia de preservação da honra?
Construindo uma relação de confiança entre as famílias e a escola. A escola precisa de se aproximar das famílias e de lhes demonstrar que se preocupa com os filhos e as filhas e que o seu papel é prepará-los, quer academicamente, quer em termos da interiorização dos direitos humanos. Essa relação de confiança é fundamental para que as crianças e jovens ciganos permaneçam na escola de forma prolongada e bem sucedida.

Mulheres mais escolarizadas continuarão a aceitar este “peso”?
As regras vão sendo contornadas. Por exemplo, pela “lei cigana”, dois jovens que estejam comprometidos não podem namorar, mas eles namoram. O telemóvel veio revolucionar as relações de namoro. E o facto dos jovens e das jovens ciganas quererem estar nas redes sociais faz com que vejam a escola também como uma necessidade.

É uma nova utilidade para a escola...
Exactamente. Há muitas. Essa é uma delas.

As redes de sociabilidade estão a alargar-se por causa da Internet?
Estão. Há várias mutações a acontecer. A cultura é um processo. A cultura cigana (como qualquer cultura, mas de forma mais acentuada) encontra-se entre a tradição e a mudança. No caso das mulheres, isto significa uma consciencialização de que estas não deixam de ser mulheres respeitadas por construírem percursos escolares prolongados de sucesso.

A imagem que existe é de impermeabilidade...
Há baixa permeabilidade à assimilação, mas assimilação não é integração. Na assimilação, eu deixo de existir enquanto diferente, torno-me igual ao “outro”. Na integração, eu mantenho da minha cultura aquilo que considero essencial, mas também partilho do outro universo cultural. As pessoas não querem ser assimiladas, não querem deixar de ser ciganas, querem ser integradas, fazer parte, mas a população maioritária olha para a população cigana com muita desconfiança. O mercado de trabalho está-lhe vedado. Mesmo a escola é um território social culturalmente territorializado.

O que é que isso quer dizer?
Quer dizer que ainda é um espaço dominado pela cultura da população maioritária. Ouço muitas vezes dizer: a nossa escola. A escola pública não é nossa, é de todos. E só olhamos para os outros como outros porque somos diferentes. Para os outros nós também somos outros. A partir do momento em que se faz isto estabelece-se uma relação hierárquica. Convivências interculturais hierarquizadas significam discriminação. E a população maioritária nem sequer essas redes tem estabelecido com a população cigana. Há uma tendência para segregar, para não conviver.

A escola não é o sítio onde isso não acontece?
Era suposto. A escola é por excelência o sítio de convivência de todas as diferenças. Sendo obrigatória, gratuita, universal, todos se encontram nela. Agora, uma coisa é uma escola onde a interacção de facto acontece de forma igualitária e outra coisa é uma escola onde se encontra uma espécie de mosaicos. No recreio, estão os ciganos num lado e os não-ciganos noutro. Já vi realidades muito interessantes e distintas. Já ouvi crianças não ciganas a dizer: “Não brinco contigo porque és cigano.” Mas também já ouvi crianças não-ciganas a dizer: “Vou brincar aqui contigo, lá fora os meus pais não deixam.” As próprias crianças interiorizam de forma diferente o que vão aprendendo.

O que é que as escolas têm de fazer para promover maior contacto intercultural nos recreios?
Num primeiro plano, seria importante que as escolas, ao nível dos seus projectos educativos, tivessem plasmados determinado tipo de princípios, nomeadamente a igualdade, a solidariedade, a interculturaidade, a democraticidade, a não discriminação, os direitos humanos. Depois, ter um corpo docente consciente do que estes princípios implicam do ponto de vista da sua aplicação no quotidiano escolar. Havendo esta consciencialização, seria importante que as práticas pedagógicas ao nível da sala de aula promovessem o trabalho de grupo, colocando em interacção alunos e alunas da diversidade de proveniências socioculturais que espelhasse a realidade da sala de aula. Esta interculturalidade ao nível da sala de aula, seria promotora de redes de sociabilidade interculturais ao nível do espaço extra sala de aula, que poderia ser potenciado com a organização de jogos colectivos que apelassem aos princípios plasmados nos projectos educativos, concretizando-os.

Têm aparecido vários níveis de denúncias: crianças ciganas à parte no recreio, turmas só com crianças e jovens de etnia cigana, escolas só com crianças ciganas…
No caso de escolas só com crianças ciganas, como a Escola Básica de 1.º ciclo de Meães, em Famalicão, não há uma intencionalidade da escola. Este é um processo que foi gradualmente acontecendo. No caso das turmas de alunos de uma determinada cultura há uma intencionalidade da escola. Mesmo que quem o faz diga que isto é uma discriminação positiva, não é. Essas turmas são ilhas dentro das escolas. Há ausência de diálogo intercultural, o que perpetua o desconhecimento e a desconfiança. E a escola baixa o nível de exigência, faz um currículo adaptado. Isso gera insucessos repetidos. Depois temos programas integrados de educação e formação…

Que estratégias pode adoptar uma escola quando percebe que os pais de alunos não-ciganos estão a desviar os seus filhos para outras escolas?
As escolas não têm propriamente forma de actuação em situações dessa natureza. É importante fazer cumprir a legislação nacional que, ao nível do ensino básico, refere claramente a obrigatoriedade de matrícula na escola da área de residência. Se as escolas estão inseridas em zonas sociogeográficas maioritariamente habitadas por população não-cigana e essa realidade não se reflecte na frequência escolar, a direcção destas pode e deve informar o Ministério da Educação dessa situação.

Os estudantes de etnia cigana tendem a ser encaminhados para fora do ensino regular?
Os últimos dados conhecidos são muito antigos. São de 2002/2003. Esses dados evidenciavam um reduzido número de jovens ciganos no secundário regular. São canalizados por professores ou psicólogos da escola para percursos curriculares alternativos ou cursos vocacionais ou cursos de educação e formação, que felizmente deixaram de existir... Mas o ensino regular é que oferece o conhecimento que confere prestígio, poder. A escola não está a cumprir o seu papel de potenciar uma mobilidade social ascendente. Vamos ter agora muito proximamente novos dados do Ministério da Educação que permitirão fazer um retrato da população cigana a nível da educação escolar.

Que estudos o Observatório das Comunidades Ciganas vai promover ou fazer para ajudar a quebrar estes enguiços?
Este retrato que o Ministério a Educação está a fazer é fundamental para conhecermos estatisticamente a realidade. A partir daí podemos fazer estudos qualitativos. Vamos fazer um estudo com um caso de sucesso e outro com um caso de insucesso, ver as variáveis que interactuam, que potencialidades é que um evidencia para podermos sugerir mudança, o que pode ser modificado positivamente noutro.

O observatório tem verba para funcionar?
A verba é bastante reduzida, até porque o anterior Governo não concorreu aos fundos comunitários de apoio à implementação da Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas. No novo quadro 2030 é que vamos ter acesso a esses fundos.

O Alto Comissário para as Migrações, Pedro Calado, já anunciou que a prioridade será a educação…
A primeira dimensão de análise é a educação, que consideramos fundamental. Estamos agora a abrir uma call: dissertações de mestrado ou teses de doutoramento que tenham sido defendidas, o observatório ira seleccionar uma para publicar. E fazer os tais estudos qualitativos a partir dos dados do Ministério da Educação.

Como se está a fazer este levantamento sem ferir o quadro legal que impede recolha de dados étnico-raciais?
São dados agregados, números. Não tem nome. A Comissão Europeia tem andado insistentemente a dizer aos Estados-membros que devem fazer recolha de dados para se conhecer a realidade, intervir de forma sustentada, construir políticas públicas que permitam melhorar a qualidade de vida das populações em situação de fragilidade social.

É nessa linha que surge o Grupo de Trabalho Censos 2021, de que faz parte?
Sim, faço parte desse grupo de trabalho. Além de investigadora, sempre fui activista. Sempre fiz intervenção politico-cívica. Conheço os movimentos associativos das pessoas que são vítimas de discriminação e sei que são a favor do levantamento de dados étnico-raciais. Não sou eu que a partir do exterior, de forma paternalista, vou dizer o que é positivo e o que não é positivo. O meu papel aqui é ajudar na reflexão no sentido de construir categorias e questões.

Há bons exemplos?
Nenhum dos exemplos que conheço servem. Qualquer um acaba por sustentar as categorias que são causa no quotidiano para operacionalizar os processos de discriminação. Vou com abertura para reflectir. O grupo de trabalho está a começar. Tivemos a primeira reunião. 

Quais os riscos?
Temos duas questões. A primeira é: que categorias e que questões vão ser construídas? A outra é: o que pode acontecer com os dados que são recolhidos? Temos um governo de esquerda que tem várias preocupações, quer fazer melhores políticas públicas, não sei o que pode acontecer com um governo de direita. Pode usar estes dados para confirmar estereótipos e categorias que racializam em vez de construir melhores politicas públicas. Este é um dos perigos.

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