Vasco Coelho Santos no ano de todos os prémios

Revelação para os Prémios Mesa Marcada, Revelação para a Revista de Vinhos, entrada para o top dos dez melhores restaurantes do país no primeiro ano de vida. O que é que o Euskalduna tem?

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Vasco Coelho Santos, as tripas e os peixes Nelson Garrido
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A equipa do Euskalduna Nelson Garrido
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A sala do Euskalduna Nelson Garrido

Na cozinha do Tavares, nos tempos em que José Avillez era o chef deste espaço lisboeta, Vasco Coelho Santos, ainda um jovem inexperiente, arranjava “uns 20 salmonetes por dia”.  Uma vez, Avillez aproximou-se dele e perguntou-lhe: “Já percebeste o salmonete? Sabes quantas espinhas tem?”. Vasco ficou “a pensar naquilo”. “Não, não sabia. Percebi que tinha que estudar melhor cada produto, tentar percebê-lo, conhecer o habitat de onde vem.”

Foi uma lição, mas não a que mais o marcou durante esse estágio. “Houve um episódio… Cheguei pela primeira vez atrasado ao trabalho, uns cinco minutos, e tinha avisado. Mas, mal entro, o Avillez estava à minha espera e manda-me para casa. Aquilo tocou-me tanto, nunca ninguém me tinha feito algo do género. A partir daí, nunca chego atrasado, chego muitas vezes com 45 minutos ou meia hora de antecedência.”

Vasco recebe-nos no Euskalduna Studio, o seu restaurante, no Porto, que no início de Dezembro festejou o primeiro aniversário e, pouco mais de um mês depois, a 15 de Janeiro, foi duplamente distinguido nos Prémios Mesa Marcada, em que Vasco foi o Chefe Revelação do Ano e o Euskalduna foi o Prémio Especial Estrella Damm Destaque do Ano. Mas, nessa noite, Vasco subiu ao palco ainda mais duas vezes, porque entrou directamente para o Top 10 Chefes 2017 (no nono lugar) e o seu restaurante para o Top 10 Restaurantes 2017 (oitavo lugar).

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Gamba com caril Nelson Garrido

À hora a que chegamos, pelas 17h30, a confusão está instalada, há caixas, toalhas, copos, por cima das duas únicas mesas (os restantes lugares são ao balcão) e a pequena equipa está em grande actividade a preparar tudo para o serviço de jantares (o Euskalduna não serve almoços).

A conversa é várias vezes interrompida pelos fornecedores que vêm fazer entregas e por telefonemas pedindo reservas — o que está cada vez mais difícil, porque, depois de aos prémios Mesa Marcada se ter somado no início de Fevereiro o de Chef Revelação pela Revista de Vinhos, o Euskalduna tornou-se o restaurante onde toda a gente quer ir. Há apenas 16 lugares por noite e já estão a fazer reservas para Maio.

Vasco fala rapidamente — “Sou muito stressado”, diz — e numa hora conta a história que o levou até aqui, aos dias do sucesso. Começámos este texto nas cozinhas do Tavares com José Avillez, mas temos que recuar um pouco mais para perceber quem é o nosso interlocutor. Vamos encontrá-lo no último ano do curso de Gestão, “um bocado descontente” e a vacilar quando um amigo lhe fala na ideia de ir fazer um curso de cozinha. “Não sabia muito bem, mas tudo aquilo em que me metia era para levar a sério, por isso, por que não cozinha?”. Seguem-se outras lições que o trouxeram até aqui: em cada um dos sítios por onde passou aprendeu alguma coisa. O Euskalduna é o resultado desse percurso.

Foi no restaurante de Olivier que teve a sua primeira experiência numa cozinha, conseguida pela intervenção do pai, que conhecia o restaurador. “Mal comecei a trabalhar, aquilo mexeu comigo, gostei da adrenalina. Treinava muito em casa, mas não tinha ainda bem a noção do que era a alta gastronomia.” Num festival Peixe em Lisboa perdeu “a vergonha”, foi falar com Avillez e disse que gostava de fazer um estágio no Tavares.

Quando terminou esse estágio, já não tinha dúvidas e comunicou aos pais que não iria voltar para o curso de Gestão. Mas sentia que ainda tinha muito para aprender e hesitava entre um novo curso ou estágios no estrangeiro — mais uma vez foi José Avillez quem lhe apontou o caminho e Vasco seguiu para o País Basco, para o Mugaritz, de Andoni Aduriz.

“Só quando estou no Mugaritz é que percebo realmente o que quero e percebo que as pessoas acreditam em mim.” O azar do restaurante, que um mês depois ardia num incêndio, acabou por ser uma sorte para Vasco, que, quando todos partem, resolve ficar e esperar a reabertura. Isso fez com que durante meses trabalhasse muito próximo do ultracriativo Andoni, experimentando novos pratos.

“Hoje identifico muito o meu restaurante com o trabalho do Mugaritz no período em que lá estive, é um trabalho muito centrado no produto, dois ou três ingredientes, o molho. Lá tínhamos fornos muito complexos, estudava-se o grau de humidade dentro e fora da peça, percebia-se as reacções das proteínas.” Ainda passou pelo Arzak e pelo elBulli, para um estágio de oito meses, que vai até ao dia do encerramento do mítico restaurante de Ferran Adrià.

Por fim, regresso ao Porto e a entrada no Pedro Lemos, onde ficou dois anos e meio e aprendeu aquilo que, depois da técnica do Mugaritz e da extraordinária organização do elBulli, ainda lhe faltava: bases mais clássicas. “Foi aí que cresci mais como cozinheiro, aprendi muito sobre as bases da cozinha francesa e, se tivesse que dizer quais os dois restaurantes que mais me influenciaram, seriam o Mugaritz e o Pedro Lemos.”

Mas, antes de avançar para um projecto próprio, ainda faltava uma coisa: uma viagem à Ásia em busca de inspiração, a que se seguiu um início ainda num projecto de cozinha privada. “Depois, a meio de 2014, decido abrir um restaurante de frangos. Adoro frango, quando estava no elBulli saíamos e íamos a um restaurante de frango assado que só fechava às quatro da manhã, frango numa cesta, batata frita, comia-se com as mãos.”

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A equipa na cozinha Nelson Garrido

Com os sócios, abriu o Baixópito, onde começou por tentar fazer um frango “super-suculento”, em que os animais eram injectados um a um com uma salmoura líquida. Correu muito bem mas nem tudo foi compreendido e foi necessário ajustar muita coisa.

E chegamos, finalmente, ao Euskalduna. Viagem ao Japão para perceber como funcionam os restaurantes de balcão (foi importante para estudar os detalhes, mas a relação com os clientes é aqui, no Porto, muito mais descontraída) e abertura de um restaurante pequeno, um espaço de inspiração japonesa com um nome basco (euskalduna significa “eu sou basco” e vem da graça de explicar o nome Vasco no País Basco).

“Adoro lidar com as pessoas, tê-las à frente e falar com elas, ser eu e a minha equipa [Nuno Brás, o número dois, o sommelier Edgar Alves, e ainda Rui Silva e João Costa] a recebê-las. A meio do jantar já estão a conversar umas com as outras, a trocar números de telefone.”

Depois de uns meses em que foi “tremidinho” e “não aparecia assim tanta gente”, começou a espalhar-se a palavra. “Com os primeiros prémios que ganhámos aqui na cidade, ao fim de seis meses, fiquei maluco, foi a primeira vez que percebi que as pessoas adoravam o nosso conceito, por ser só meu, não ter investidores, pela experiência de estarem ao balcão. Sinto que tenho um restaurante que é um sonho para muita gente, pequenino, que abre apenas quatro dias por semana, onde fazemos o que nos apetece e não vamos atrás de ninguém. Talvez as pessoas pensassem que, por eu ter estado no elBulli, iam ver bolhinhas por todo o lado, mas quando vêm percebem que isto é cozinha autêntica.”

Um jantar que é um teatro

Quando fazemos a reserva para jantar no Euskalduna Studio, recebemos um email confirmando e perguntando se temos alguma restrição alimentar ou algo de que não gostemos. Meio na brincadeira, respondemos que não temos um grande entusiasmo por couves de Bruxelas. No dia marcado, quando nos sentamos ao balcão, Vasco Coelho Santos sorri e diz: “Tudo menos couves de Bruxelas, não é?”.

A preocupação é que, num espaço tão intimista como é o Euskalduna, o serviço seja o mais personalizado possível. Um cliente que venha várias vezes nunca provará pratos repetidos porque a equipa registou o que ele comeu a cada visita e preparou coisas diferentes.

Em cima do balcão está uma lista com os clientes do dia, na qual vão sendo riscados os pratos já servidos. Vasco coloca o menu à nossa frente virado para baixo e diz: “Se quiser que seja uma surpresa, não o vire. Se não, pode virar.” Divide-se em dez momentos e duas pausas e os pratos vão sendo compostos à nossa frente, da bolacha de algas com tártaro de peixe e folha de alface-do-mar, com que iniciamos a refeição, até ao D. Rodrigo muito pouco doce, com que terminamos.

Pelo meio há (para dar alguns exemplos) uma sopa, esta de choco marinado, levemente grelhado e cortado em lâminas finas, num caldo cheio de sabor, onde se espalham, como numa pintura, gotas de óleo de amêndoas tostadas; um prato de gamba do Algarve crua, creme de cabeças de carabineiros e granizado de caril; terrina de porco com jus de pés de porco e salada de cebola avinagrada; peixe-galo em tempura com açorda de ovas, caldo das cabeças do peixe e óleo de coentros; corvina grelhada no carvão, couve, grelhada durante 12 horas sobre brasas meias adormecidas, em roupa velha; ou rabo de boi estufado durante seis horas com salada de ervas aromáticas. 

Para acompanhar, pode-se optar por uma harmonização com vinhos, cervejas artesanais ou chás e tisanas. E, durante umas duas horas, à nossa frente, Vasco e a equipa fazem da refeição um espectáculo, numa coreografia perfeita, que se vai repetindo, como um eco, a cada novo cliente que se senta.

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