A lente do género é hoje uma lupa sobre o mundo

Desde 1990 que o género se tornou um tema – ou um prisma – cada vez mais presente na sociedade portuguesa e na aldeia global. Falar de género tem sido falar de sexo, de identidade, de mulheres, da comunidade gay, mas sobretudo de poder. Três investigadores portugueses ajudam a descodificar uma cronologia. “Isto tem o potencial de transformar uma sociedade inteira.”

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Trouble in Paradise (2015), de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, esteve no Teatro Maria Matos nos 25 anos da obra Gender Trouble Anze Persin

O género pairou sobre dois dos três únicos referendos da sociedade portuguesa – sobre o aborto –, foi central na polémica gerada por um par de livros didácticos em azul e rosa, teve nomes como Gisberta ou Chelsea Manning e foi tema quando, como “uma bomba”, se revelou a realidade da violência sobre as mulheres em Portugal. “A dimensão do sexo e do género toca em aspectos muito fundos, muito emocionais”, diz a socióloga Anália Torres, e em 30 anos teve de ser discutida à mesa do café, foi convidada para o jantar das famílias, instalou-se em cima da mesa no espaço público. “Isto tem o potencial de transformar uma sociedade inteira”, enfatiza a investigadora Maria do Mar Pereira.

Foi nestes 30 anos que o género entrou na língua franca, conceito convocado para actualidade das notícias, trabalhado na investigação da academia, passageiro do circuito legislativo e protagonista da arena da política ou da sociedade do espectáculo. 
Está nos lugares mais inesperados – a bordo de um barco na costa portuguesa em 2004 entre os dois referendos (1998 e 2007) à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, trazido pela organização Women on Waves, ou, desde há um ano, nas t-shirts da moda de luxo, graças às quais e por módicos 600 euros podemos vestir o título do ensaio da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie We Should All Be Feminists

Está também nos lugares mais esperados e centrais da vida em sociedade, como no registo civil, onde Teresa Pires e Helena Paixão tentaram pela primeira vez, em 2006, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou no Parlamento, a clamar pela adopção por casais gay ou pelo reconhecimento de uma identidade que não coincide com o corpo biológico. Também dançou nos anos 1990 com as Spice Girls a mercantilizarem o “girl power, e correu nas pistas de atletismo, com o corpo da atleta sul-africana Caster Semenya a ser escrutinado em 2009, levando a intersexualidade, mas também o racismo, o feminismo e, no fundo, o género ao pódio.

Falamos cada vez mais sobre género. Mas do que falamos quando falamos de género? Em 1990, ano de nascimento do PÚBLICO, a filósofa norte-americana Judith Butler escrevia a obra fundamental Gender Trouble – que só foi traduzida em Portugal em 2017, sob o título Problemas de Género. Em 2015, era homenageada no Teatro Maria Matos como uma das principais responsáveis, a par de Teresa de Lauretis ou outros pensadores, pela forma como hoje definimos o género como uma construção social e o distinguimos do conceito binário de sexo feminino e masculino. “As regras e as normas de determinada sociedade é que definem o que é ser mulher ou ser homem”, explica Anália Torres, coordenadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, ao PÚBLICO. “A essas regras, normas, passou-se a chamar género - as pessoas têm para além do sexo biológico uma construção social em cima do corpo biológico.”

E, continua a professora e investigadora Maria do Mar Pereira, essa “é uma construção social muito frágil, assente em ideias bastante arbitrárias: o azul para rapaz e rosa para raparigas – há cem anos era o contrário”, recorda a vice-directora do Centre for the Study of Women and Gender da Universidade de Warwick. “Mas como acreditamos nelas muito profundamente criamos um aparelho social muito pesado por cima destes alicerces muito frágeis. Que não vemos. O que vemos é uma construção muito dura, difícil de alterar.” 

Uma sociedade em revolução

Para Manuel Lisboa, director do Observatório Nacional de Violência e Género e professor da Universidade Nova de Lisboa, “a grande afirmação acontece depois do 25 de Abril – e não aparece logo com a palavra ‘género’, aparece com a palavra ‘mulheres’”. É dos feminismos, dos estudos sobre mulheres que surgem os temas do género, de Simone de Beauvoir às Novas Cartas Portuguesas, das sufragistas a Betty Friedan. Mais tarde, nos anos 1990, juntam-se-lhes as teorias queer, que só nos anos 2000 se afirmam na academia portuguesa, por exemplo. Mas antes disso tudo, Abril. “Quando uma sociedade está toda em revolução, toda a gente está disposta a pensar sobre as coisas”, postula Maria do Mar Pereira.

Há forças sociais sintomáticas. O casamento católico caiu tanto na primeira década do século XXI como desde os anos 1970 até ao final do milénio; há tantos nascimentos fora do casamento quanto dentro do matrimónio, contextualiza Anália Torres. A valorização da liberdade individual é essencial para as mudanças na forma como se vê e lida com o género, as sexualidades, as identidades. “Há uma geração de portugueses nascidos no pós-25 de Abril para quem as questões dos valores que têm a ver com as normas relativamente à liberdade pessoal são completamente diferentes.” No resto do mundo, acontece o mesmo. “Estes últimos 15 a 20 anos foram particularmente expressivos nessas mudanças, que se relacionam depois com as questões de género.” 

Hoje somos cada vez mais convocados a olhar para o mundo através da chamada lente de género. Para Manuel Lisboa, isso deve-se à actividade dos militantes, das organizações não-governamentais e ao trabalho da academia que depois impacta o tecido social. “Fizemos o I Inquérito Nacional Sobre a Violência Contra as Mulheres em 1995 – o primeiro da Europa tinha sido feito dois anos antes na Holanda – e quando apresentámos os resultados foi uma espécie de uma bomba.”

Conclusões: “cerca de uma em cada duas mulheres, com 18 ou mais anos, tinha sido vítima de pelo menos um acto de violência física, psicológica ou sexual”; essa violência “acontecia também dentro de casa e a família, que era considerado o lugar mais protegido, mais seguro para as mulheres, era o lugar mais perigoso – outra ideia que foi uma bomba”. 

Cinco anos mais tarde, a violência doméstica passava de crime semi-público a crime público e nascia o I Plano Nacional Contra a Violência Doméstica; em 2014 propunha-se que a violação se tornasse um crime público. “A violência contra as mulheres é a expressão dramatizada das desigualdades que ocorrem em muitas áreas da sociedade – económica, política, profissional, social”, sublinha Manuel Lisboa.

“Pouco a pouco, todas as diferentes dimensões da sociedade foram sendo colocadas sob este microscópio” mas isso “não é uma ruptura repentina, é o trabalho acumulado de muitas pessoas na educação, no activismo, nos media”, elenca Maria do Mar Pereira. “Toda a sociedade deve orgulhar-se deste trabalho.”

No último ano, um jornal de referência mundial, o New York Times, tem pela primeira vez uma editora de Género; em Portugal, existe no PÚBLICO o podcast semanal Do Género. É nos anos 1990 que surge, por exemplo, a Associação ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero (LGBT), parte da rede internacional fundada em 1978. Com elas convivem inúmeras associações dedicadas ao género, na óptica das mulheres, das pessoas transgénero, da comunidade LGBT. Os dados que compilam ou as acções que mobilizam mostram a disparidade entre  a realidade quotidiana e a legislação.

Só em 1982 é que a homossexualidade, crime desde 1954, desapareceu do Código Penal, por exemplo. Em 2004 foi alterada a Constituição para que a orientação sexual passasse a ser factor de não-discriminação; em 2010, foi aprovado o casamento de pessoas do mesmo sexo. “Em Portugal, talvez o momento mais importante em termos simbólicos seja o dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, porque mostrou que há uma geração de portugueses e portuguesas que conseguem sustentar esse ponto de vista”, argumenta Anália Torres. A par dos referendos sobre o aborto ou do inquérito nacional sobre a violência, são os exemplos mais citados como momentos-chave do género em Portugal. Em 2013 foi aprovada a co-adopção por casais do mesmo sexo e em 2016 a procriação medicamente assistida para mães solteiras ou casais de lésbicas foi tornada legal. 

Gilbert, Caitlyn, Chelsea

Outras realidades cruas se cruzaram com a mudança de mentalidades: em 2006, Gisberta era morta e a transexualidade era notícia porque alguém tinha sido alvo de brutal violência. Agredida repetidamente e violada ao longo de dias por 14 adolescentes no Campo 24 de Agosto, no centro do Porto, era prostituta, transgénero, imigrante, estava doente e frágil. Durante esses mesmos anos, Portugal fascinava-se com José Castelo Branco, um socialite que rejeita a heteronormatividade, um gender bender de reality shows e das revistas do social que aprecia tanto os códigos ditos femininos quanto a performance e a fluidez de rótulos. O género estava no mainstream português por motivos e territórios muito diferentes.

Só em 2013 o Código Penal Português passaria a prever que se agravem as penas de condenados por homicídio ou ofensas à integridade física se se verificar que o crime foi cometido por motivos relacionados com a orientação sexual ou a identidade de género da vítima. Entretanto, Gisberta tornou-se um símbolo. Em 2011, foi aprovada a Lei de Identidade de Género, que retira os tribunais do processo de alteração de nome e sexo.  

Nesse mesmo ano, nos EUA, um dia depois de ter sido sentenciada a 35 anos de prisão pelas fugas de informação sobre a guerra no Iraque e no Afeganistão para o Wikileaks, Chelsea Manning revelava que não se identificava mais como Bradley. Em Junho do ano seguinte, Laverne Cox, uma das estrelas da série do Netflix Orange is the New Black era a primeira pessoa transgénero na capa da revista Time, que anunciava que a questão trans era “a próxima fronteira dos direitos civis da América”. Em 2015, Caitlyn Jenner revelava a sua transição de género na capa da glamorosa Vanity Fair, e a transexualidade era novamente notícia porque o antigo atleta e estrela de reality shows se identificava como mulher. Até hoje, o direito de usar uma casa de banho conforme o género com que se identifica um cidadão americano continua em contenda em vários estados.

“Qualquer situação em que tenhamos tido que ter uma conversa colectiva sobre estas questões faz diferença”, defende Maria do Mar Pereira. “A morte da Gisberta, até os livros de actividades da Porto Editora, todos esses momentos em que as pessoas tinham de conversar sobre o assunto no café, ao jantar, na escola… O debate sobre as quotas, o debate público sobre os ‘piropos’ – são situações em que se perturba o piloto automático.” Os media, a aceleração fornecida pelas redes sociais e, sugere a investigadora da universidade de Warwick, a “mudança demográfica” com os mais jovens cada vez mais expostos e ligados a estes temas, foram a faísca específica dos últimos cinco anos. 

Reprodução vs produção

Nos últimos meses, um escândalo sobre assédio em Hollywood galgou fronteiras da indústria e dos EUA e tornou-se numa conversa global sobre género e poder. Maria do Mar Pereira nota como “parece um terramoto, mas é algo que acontece há décadas. O que aconteceu [de novo] foi a possibilidade de nos questionarmos sobre a normalidade e a aceitabilidade do que se passa”. Anália Torres destaca o momento, resumido na cultura popular como #MeToo, associando-o à presidência Trump, à reacção saturada das mulheres. E avisa: “As desigualdades persistem porque o lugar das mulheres na reprodução não mudou e nas sociedades contemporâneas há uma desvalorização da dimensão da reprodução - há uma valorização da dimensão da produção, que é onde estão os homens”.

As mulheres também passaram para a esfera da produção, mas só acumularam responsabilidades; nas esferas com mais dificuldades económicas, o equilíbrio é ainda mais difícil. Aliás, “o controlo da reprodução por parte dos homens é também o controlo da sexualidade e tudo o que não é a sexualidade normativa e heterossexual é desvalorizada”, lembra, o que explica que “a homossexualidade é tolerada hoje em dia”, mas não verdadeiramente aceite. “O mainstream da nossa sociedade ainda é binário”, constata Manuel Lisboa. A revolução será demorada.

O género é tema de conversa, mas a conversa só está a começar. “É um processo em curso. Nos próximos 30 anos continuaremos envolvidos nele”, diz Maria do Mar Pereira. “As forças sociais, políticas, económicas que acentuaram as desigualdades de género ao longo dos séculos não morreram – se olharmos para o Brasil, elas estão lá. A palavra género é quase uma palavra diabolizada hoje em dia no Brasil”, exemplifica Manuel Lisboa. Recorda como, em 2017, depois de uma passagem calorosa por Lisboa em 2015, Judith Butler foi agredida no aeroporto de São Paulo e a sua palestra no centro cultural Sesc Pompeia motivou um protesto em que se queimou a sua efígie e onde manifestantes religiosos “contra o imperialismo da ideologia de género” gritavam “queimem a bruxa”. 

“A persistência das desigualdades tem que se perceber também nas reacções que provocam [as questões de género], porque estas dimensões simbólicas remetem para coisas muito inconscientes, há dimensões da identidade individual que são tocadas”, contextualiza Anália Torres. Mas nestas décadas, frisa Manuel Lisboa, “uma coisa se percebeu: não há construção de sociedades livres e democráticas sem igualdade de género”.   

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