As mulheres já estão a abrir os olhos

Em São Tomé e Príncipe, onde há muita “mãe que é pai, que é mãe, que é tudo”, tem estado a formar-se uma espécie de exército pró-igualdade de género e antiviolência doméstica e familiar. “Muitos não vão querer ouvir esta história, mas alguns já estão a entender.”

Foto
Janaina Lopes Teresa Pamplona

Alice Cruz acordou sem saber como quebrar o jejum aos filhos. “Levantei-me e não tinha nada para pôr no fogo. Tive de fazer dívida na barraca. Tomei um quilo de arroz da mão da senhora, fui à minha irmã pegar um pouco de açúcar e vim fazer arroz-doce.” Um improviso. Para fazer o arroz-doce tradicional de São Tomé e Príncipe teria de juntar leite de coco, pau de canela, cravinho e casca de limão.

Quem anda pela estrada principal da ilha de São Tomé pode ser tomado por uma ilusão de abundância. Tem dono essa fartura que se vê suspensa nas árvores - fruta-pão, jaca, sape-sape, goiaba, papaia, manga. E esta mulher de 39 anos tem nove filhos de dois ex-companheiros e nenhum deles paga pensão de alimentos. “A gente está entregue a Deus. Quando tem, a gente come; quando não tem, a gente não come.”

Senta-se num banco com as crianças em redor. “Não tive sorte”, suspira. O corpo magríssimo, resistente. A roupa justa, escura. A voz grave, cansada. Sem soltar um ai, o bebé instala-se no colo dela, levanta-lhe a camisola e põe-se a chupar um dos seios. Há-de fazer isso várias vezes e ela há-de continuar a falar, com toda a naturalidade. “Primeiro homem que tomei, deixou-me grávida com quatro filhos. Não deu nenhuma assistência desde que foi para Angola, já tem 16 anos. Com todas as dificuldades, eu pensei que um outro homem me ia ajudar. Largou-me grávida de quatro meses desse garoto aqui. Agora, diz que o filho não é dele.”

Há “muita mulher que é mãe, que é pai, que é tudo” nestas ilhas verdejantes, situado no golfo da Guiné. Os censos de 2012 apontavam para 41,2% chefes de família do sexo feminino, mais 9% do que em 2001. Isso terá que ver com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, com o aumento da escolaridade, a emancipação, mas também com a tendência crescente de não-assunção de responsabilidades paternais.

O não-pagamento de pensões de alimentos a filhos menores e o não-reconhecimento de paternidade de crianças nascidas fora do casamento encabeçam a lista de motivos pelos quais as mulheres de São Tomé e Príncipe procuram a Justiça. À falta de números oficiais, fala a experiência de Vera Cravid, magistrada do Ministério Público que se dedica sobretudo a processos relacionados com trabalho, mulheres e crianças.

Foto
A vida de Alice Cruz é uma luta Dário Paraíso

“Se a criança não tiver alguma coisa parecida [com ele], o homem considera que não é filha dele”, explica a procuradora. Mesmo assim, pode ser uma luta para pagar pensão de alimentos. “Muitos entendem que, ao dar dinheiro às crianças, estão a alimentar as mães e que as mães vão alimentar os futuros maridos.”

Alice já foi ao tribunal. Quer forçar o pai dos quatro filhos mais novos a ser mais responsável do que o pai dos cinco mais velhos. “Fiz queixa dele. Ele começou a dar assistência. Dava 600 mil dobras para alimentar esses filhos. Um euro é 24.511 dobras. Deixou de dar. Dezembro não deu nada. Janeiro não deu nada. Fevereiro não deu nada.”

Quando se viu na rua grávida, com oito filhos, veio para esta casa, situada em São João de Angolares, pequena vila do Sul da ilha. A casa, agora, é uma típica estrutura de madeira construída sobre barrotes, com o seu delicado alpendre, o telheiro coberto com folhas de zinco. Naquela altura, estava toda aberta. “Não tinha paredes. Tinha panos. A gente vivia praticamente na rua.” E tem sido “uma luta” para a acabar. É uma luta para alimentar os filhos e mantê-los na escola. “Vou para a praia, tomo peixe da mão dos pescadores e vou vender. Naquele ganho que eu tenho, tenho de voltar para fazer conta com os pescadores. Com aquele lucro é que vou mantendo a casa e pagando as dívidas. Estou cheia de dívidas.”

Não está totalmente só. Há gente preparada para defender os direitos das mulheres. Uma delas é a vizinha dela, Beatriz Azevedo, deputada na Assembleia Nacional, que lhe diz: “Não pode desanimar, comadre. Mesmo com a miséria que está a viver, tem de encarar a sociedade, tem de ser batalhadora, tem de manter essas crianças na escola. Amanhã, se tiverem formação, essas crianças vão ajudar.”

”Só está a comer a banana  do marido”

A Constituição consagra a igualdade. A Lei da Família realça o respeito pela partilha de responsabilidades. São Tomé e Príncipe ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. O país vai para a III Estratégia Nacional para a Igualdade e Equidade de Género. E tem há dez anos uma Lei Contra a Violência Doméstica e Familiar.

Isto pode até parecer muito, mas não basta um quadro jurídico-legal. “Muitas mulheres ainda não têm consciência dos seus direitos”, observa Domitília Trovoada, que em 2009 se uniu a algumas colegas para fundar a Associação São-Tomense de Mulheres Juristas. Têm andado pelo arquipélago a divulgá-los. E abriram um Gabinete de Apoio Jurídico às Mulheres na cidade. “As mulheres vêm mais aqui porque os homens não dão apoio aos filhos”, esclarece.

As vítimas de violência doméstica vão mais ao centro de aconselhamento. Nos últimos 12 anos, esse serviço público desenvolveu informação didáctica, deu formação a agentes das áreas da justiça e da saúde, abriu a unidade de apoio a vítimas de violência doméstica e montou a Rede Vida, que agrega diversas entidades públicas e privadas, incluindo a Associação São-Tomense de Mulheres Juristas.

A unidade de apoio não é uma casa-abrigo. É aquilo a que se poderá chamar um centro de emergência. Só acolhe vítimas por um prazo de 48 horas. A sensação de desamparo pode ser desmedida.

Na cidade, ao chegar à Cáritas, à procura de um saco de arroz para pôr no fogo ou de algum dinheiro para comprar um xarope, está Juliana Jordão, de 29 anos. Traz uma criança ao colo, com a cabeça encostada no seu ombro, outra às costas, com a cabeça tombada. “Eles acumulam doenças e não tenho como ‘curar’ as doenças.”

Vive numa casa de madeira construída pelo Estado e pela Cruz Vermelha para idosos carenciados em Pantufo, na periferia da cidade. A casa é só um quarto e uma varanda, que partilha com a mãe e os cinco filhos, mesmo ao lado de uma lixeira fumegante. Não encontrou alternativa melhor. “Já imaginou uma pessoa grávida dormir no corredor sem pano?!”, pergunta, em jeito de queixa. “Homem são-tomense dá-me barriga e deixa-me na rua sem nada. Tive de pedir no vizinho. Muito mau. Ele é muito mau.”

Juliana tem seis filhos de quatro homens diferentes. Desde os 19 anos que a vida dela é uma sucessão de gravidezes intervaladas por curtos períodos de aleitamento. “Ela é que quer”, comenta uma funcionária, com ar de reprovação, dizendo nada ter para lhe dar. “Eu tomo comprimidos mas falho e quando falho engravido”, justifica a rapariga. “Pai desta aqui ajuda, graças a Deus. Os pais dos outros não ajudam. O pai desta aqui já me queixei umas cinco vezes. Não ajuda desde que ela nasceu. Ele também tem uns seis ou sete filhos de outras mulheres...”

Foto
Juliana Jordão com os filhos Teresa Pamplona

Há em histórias como a de Juliana um reflexo da resistência à contracepção. “Temos um tabu que é: o planeamento familiar estraga a mulher, dá corrimento, infecção vaginal, a mulher fica sem piada, perde sensibilidade”, resume a enfermeira Vicentina Fernandes, da Associação São-tomense para o Planeamento Familiar. A resistência também se faz no masculino. “Os homens dizem que as mulheres que fazem planeamento familiar são bandidas”. Que quer isso dizer? “Ela está com ele e está com outros. Ela está a fazer controlo, não vai parir, então pode fazer da vida dela o que ela quiser.”

Não é só por isso que 43% da população tem menos de 15 anos (2012). Quando um homem e uma mulher se unem, num instante se instala a expectativa de chegada de uma criança. Se a gravidez tarda, há logo quem se atreva a fazer comentários agressivos: “Só está a comer a banana do marido.” Interpretação de Vera Cravid: “Ela está a receber benesses e não está a dar nada em troca. O que é que ela tem para oferecer em troca? Um filho, pensa ela, esquecendo-se de perguntar se ele quer ter.” Eles nem sempre são livres. “Alguns homens já têm uma relação estável e arranjam outra mulher...”

Apesar de não ter existência legal, a poligamia tem larga existência prática. “Dá ideia que homem pode tudo e mulher tem de aceitar tudo. Se ele quiser ter três mulheres e uma catrefada de filhos, feliz da vida que a mulher tem de aceitar”, interpreta a procuradora. Fazer igual é que nem pensar. O último Inquérito aos Indicadores Múltiplos (2014) revela que parte da população acha aceitável o marido bater na mulher, sobretudo, se ela for infiel. E a percentagem é maior entre as mulheres (19%) do que entre os homens (14%).

“A mulher, aqui, é muito submissa”, lamenta Célia Posser, presidente da Plataforma de Direitos Humanos e Equidade de Género. “A submissão é socialmente vista como uma atitude correcta. E o problema não está só nos homens, está também nas mulheres, que não se insurgem, que não se afirmam.”

”Rosa, tem briga lá!”

Não é que não haja mudança. A mudança faz-se, só que “leve-leve”, isto é, lentamente, devagarinho.

Os entraves foram identificados: além da parca informação que as mulheres têm sobre os seus próprios direitos, a falta de preparação técnica na administração pública e na sociedade civil, a ausência de informação de qualidade sobre a situação da mulher, a escassez de sensibilidade dos decisores políticos. E a Associação São-Tomense de Mulheres Juristas, a Plataforma para os Direitos Humanos e Equidade de Género, a Federação das Organizações Não-Governamentais em São Tomé e Príncipe e a Associação para a Cooperação entre os Povos (Portugal) decidiram aliar-se contra isso.

Foto
Domitília Trovoada Dário Paraíso

Nos últimos dois anos, com o apoio da União Europeia e do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, aquelas organizações desenvolveram um trabalho no terreno, a que chamaram Direitos das Mulheres - conhecer, capacitar, sensibilizar. Produziram informação, tentaram capacitar 90 mulheres distribuídas por todo o país (jornalistas, líderes associativos, líderes comunitários, representantes de instituições públicas e outros cidadãos com alguma capacidade de influência) e impulsionaram um debate público.

Nas conversas com algumas mulheres que participaram nessas acções há ideias que se repetem: “Direitos das mulheres são direitos humanos”, “A violência doméstica é um crime público”, “Se homem pode ser Presidente, mulher pode ser Presidente”, “Se mulher pode lavar louça, homem pode lavar louça”.

Rosa do Carmo, de 44 anos, faz parte dessa espécie de pequeno exército pró-igualdade de género e antiviolência doméstica. “Eu sempre tive esse debate na minha zona, porque eu amo muito meus menores e também não quero que ninguém toque nos menores dos outros”, conta ela. “As pessoas, quando a criança fazia alguma coisa de mal, em vez de conversarem com a criança, pegavam e batiam fortemente. Os meus vizinhos diziam-me. Eu ia lá. Fiz essa formação e agora consigo debater melhor. Agora, até quando há confusão entre maridos e esposas alguém me vem chamar. ‘Rosa, tem briga lá!’”

É uma mulher volumosa, de traços caboclos. Enviuvou há sete anos e está ainda a criar os dois filhos mais novos. Os outros dois já fazem a sua vida. “O meu filho mais velho tem 27 anos. É professor de língua da terra, Lung’ie, o crioulo do Príncipe. A minha filha tem 22. Está estudando ainda, está a terminar Matemática, mas também trabalha. Trabalha numa loja. Tenho três netos já. Meus netinhos estão bonitos!”

Quando se lhe pergunta o que é que faz, Rosa solta uma sucessão de frases: “Eu sou uma mulher doméstica. Faço alguns negócios. Compro peixe, vou vender. Compro gasolina, vendo gasolina. Compro petróleo, vendo petróleo. Tranço cesto. O meu trabalho é trançar cesto, fazer abajur. Esse é que é meu trabalho. Eu digo que esse é o meu trabalho porque é disso que eu sobrevivo.” A Cooperativa de Artesanato, iniciativa da Fundação Príncipe Trust, na Paciência, junta várias mulheres e ela é uma delas.

Não se queixa do ganho. Pelo contrário. “Como eu tenho um bocadinho de sobra, ajudo alguns velhos e algumas crianças que o pai abandonou. A mãe deles não tem emprego. Trabalha arduamente para cuidar deles. Por exemplo, quando eu faço venda de abajur, recebo um dinheiro um bocadinho grosso, compro um saco de arroz e outras comidas e dou para essas cinco crianças e para esses quatro velhos.”

Foto
Rosa do Carmo tenta construir paz dentro da sua comunidade Dário Paraíso

Talvez por ser assim, afável, generosa, seja ouvida na vizinhança. E ser ouvida pela vizinhança é o que ela mais quer desde que se sente numa missão para desembrutecer, para humanizar. Fala com mulheres, homens, raparigas, rapazes. Fá-lo na ribeira, quando está a lavar a roupa, mas também na escola, na Igreja Adventista do Sétimo Dia. Sem misturar os vários públicos, que cada um tem a sua particularidade

“Muitos dizem que é normal bater nas mulheres. Eu digo que não, que a mulher é para ser amada. Se o pai bate na mãe, os filhos também são ofendidos. Se pai ama a mãe, ama os filhos do mesmo jeito. Muitos não vão querer ouvir esta história, mas alguns já estão a entender”, conta. “Também existem mulheres que dizem que é normal os homens baterem nelas, mas eu sempre digo que não, que não se deve. Temos de ser exemplo para os nossos filhos. Ela aceita que o homem bata nela. E os filhos? Ele vai fazer pior!”

Rosa tem a sua técnica de comunicação: “Na formação que nós tivemos sobre violência doméstica, a formadora disse que antes de conversar com alguém que cometa violência a gente deve fazer amizade com essa pessoa. Primeiro tem de se fazer amizade, chamar ela, tomar um sumo.”

Tem algumas histórias de vitória para contar. Nenhuma lhe dá tanto gozo como esta: “A mulher que batia no homem na minha zona já consegui moralizar ela. Ela é um pouco brava. Eu ia um dia sair para buscar lenha, cruzei com ela. Eu disse: ‘Vamos para a lenha.’ Ela disse: ‘Não, não ando com você.’ Eu disse: ‘Vamos, é aqui perto.’ Ela: ‘Não.’ Eu insisti com ela. Ela foi comigo. Então chegámos lá no mato e eu conversei com ela. Eu disse para ela: ‘Sempre você atira no marido, sempre essa queixa chega nos meus pés.’ Contei a ela histórias de antepassados, pessoas que faleceram com vários problemas. Eu disse: ‘Cancro na mama, cancro na garganta, é por causa de briga com homem. A mão de homem é sempre grossa. Quando apanha você num lugar, quando chega na velhice é isso que sai. Minha sogra brigava muito com o marido. Ela deu ao marido com pau de pilão nas costas e ele teve problema de peito. Ele deu nela com um garrafão de vinho no seio e ela morreu com cancro. Se quer ter vida boa, não briga.” Quando houve briga, ela veio chamar. E agora somos muito amigas.”

Homem como companheiro

Já há mulheres que se sentem “incapazes de depender”, como Júlia Santiago, que partilhou a sua história a 31 de Janeiro, na conferência de encerramento do projecto Direitos das Mulheres - conhecer, capacitar, sensibilizar. Gosta de contar a sua história. Gosta de imaginar que outras mulheres podem “tirar o modelo”.

Engravidou aos 14 anos. Teve uma filha. Tornou a engravidar. Teve um filho. “Adolescente ainda, apanhei bem do meu pai de filhos. Ele me abandonou”, relata. Na casa dos pais, em Porto Alegre, na ponta Sul da ilha, passaram a ser 15, contando com ela e os filhos. “Abri um campo, comecei a cultivar milho. Ia ao peixe, salgava, vendia. Fazia croché, vendia.” Dois a três vezes por semana, andava 32 quilómetros, 18 para cada lado, entre a casa e a estrada, em Ribeira Peixe, onde apanhava transporte para ir à cidade vender os seus produtos.

Quando os filhos entraram na escola, pensou: “Meus filhos não vão ficar aqui sem estudar.” Poupou o mais que pôde. Comprou um terreno em São Marçal, na periferia da cidade. Quando as crianças terminaram a quarta classe, mudou-se. A casa tem paredes de tijolo por revestir. Uma estrutura de madeira separa o rés-do-chão do primeiro andar. Em cima, os quartos. Em baixo, a cozinha e a sala, que lhe serve de atelier de costura - faz malas, carteiras, vestidos, calças, camisas. A obra não acabou. “Estou nesse processo. Eu disse: ‘Já que tem lugar para dormir, tem tecto, tem porta, tem casa de banho, vou parar a construção para dar estudos aos meus filhos, para eles terem uma vida melhor’.” O rapaz já terminou Direito. A rapariga está a terminar Literatura. “Começaram a trabalhar este ano. Estão a dar aulas.”

Foto
Júlia Santiago Dário Paraíso

Ficou anos sem ter uma relação amorosa. Achava que precisava dessa solidão para organizar a vida. “Eu nunca fui jovem. Eu passei de adolescente a mãe. Tinha de ser independente para ter uma estrutura familiar. Com esse estilo, arrisquei de novo formar uma família, mas sempre com medo. Sempre com medo de depender.” O novo companheiro, com quem  teve dois filhos, não estava preparado para uma relação mais equitativa. “Eu compreendo o meu marido. É um pouco complicado para ele.  Os homens gostam de mulheres que trabalham e obedecem. É um bocadinho incontrolável.” Ela é que já não está para manter uma relação desse tipo. “Para ser submissa, eu tinha que me contorcer.” “Eu trabalhando, ganhando o meu dinheiro, tinha que ficar a esperar que o meu marido dissesse o que fazer. Isso não enquadrava no meu modo de ser. Eu me sentia desvalorizada, humilhada. Não estava feliz. Ficava quietinha. E chegou a um tempo que eu disse: ‘Se for assim, é melhor cada um estar em seu lugar.’ Nós temos um entendimento, mas cada um está em seu lugar.”

Aos 44 anos, sente-se realizada: “O meu sonho era ter a minha casa, dar estudos aos meus filhos, ter o meu meio de transporte. Não tenho ainda meio de transporte, mas estou fazendo carteira. Os meus filhos são muito bem-educados. Estamos bem. Somos felizes.”

De uma assentada, Júlia aproveita para desfazer ideias feitas. “Muitas pessoas acham que para ter uma casa, tem de ter um homem. Para estar alegre, tem de ter um homem. Eu não sou mulher de dar tanto valor a homem”, diz. “Vejo homem como companheiro. Não vejo homem como a primeira coisa. Não é porque o homem não vale. O homem vale, mas a mulher sozinha consegue educar os seus filhos, pôr a sua família num caminho bom. O homem vem complementar.”

O domínio do trabalho informal

Fosse o pensamento de Júlia Santiago dominante, a directora do Instituto Nacional para a Promoção da Igualdade e Equidade de Género, Ernestina Menezes, não diria que o maior desafio é a mentalidade reprodutora de uma pobreza generalizada que é mais pronunciada nas mulheres (71,3%) do que nos homens (63,4%). “Ainda há homens que proíbem as mulheres de trabalhar. E ainda há muitas mulheres que entendem que os homens devem suportar todas as despesas. ‘Ele me tomou, tem de me sustentar...’”

Não fala de cor. Tem uma lista de factos e números que, apesar de serem de 2012, ajudam a ter uma ideia aproximada do que é a participação dos homens e do que é a participação das mulheres na actividade económica do país. E essa lista mostra que há mais mulheres inactivas (36,2 mil) do que activas empregadas (21,6 mil).

Tudo começa no acesso à educação. A taxa de analfabetismo das mulheres é de 15% (5,1 nos homens). A diferença de género é diminuta no ensino básico, mas alarga-se no secundário e superior, muito por causa da gravidez na adolescência, que ainda é de 11%. E faltam respostas para crianças menores de três anos. “Não há um serviço de amas. Não há hábito, não há incentivo. Há um ou outro jardim-de-infância que recebe, mas o habitual é deixar com uma prima, deixar com uma vizinha.”

Não será por acaso que quase metade das mulheres activas faz trabalho informal. “O trabalho informal garante aquela flexibilidade que elas precisam”, diz. “Se houvesse um centro onde as mulheres pudessem deixar os seus filhos e dedicar-se à vida profissional, elas teriam outras oportunidades. Algumas querem estudar à noite, mas vão estudar como?” Algumas gostariam de ter uma participação na vida pública. “As reuniões dos partidos podem arrastar-se pela noite fora. “Quem fica com os filhos?”

Lei e “libertinagem”

No fim do projecto Direitos das Mulheres - conhecer, capacitar, sensibilizar, escoaram as promessas de continuidade. Quem liderou o processo já repensa estratégias.

“Em algumas comunidades piscatórias, principalmente na zona Norte de São Tomé, ouvimos homens dizendo que as mulheres estão a confundir a nossa Lei Contra a Violência Doméstica e Familiar com a “libertinagem”, comenta Domitília Trovoada. “Eles acham que esta lei está a estragar as mulheres.”

Domitília tem uma teoria sobre estas reacções: “Muitos homens nem trabalham e esperam que as mulheres trabalhem fora e cheguem a casa e façam tudo. E algumas mulheres começam a dizer que nem só elas têm obrigações domésticas, que eles têm de fazer alguma coisa, que essas obrigações são de ambos. As mulheres estão a abrir os olhos e os homens não estão a gostar disso e estão a culpabilizar a lei.”

Amiúde, veio à baila o consumo de bebidas alcoólicas, que assume contornos problemáticos entre homens e mulheres. E a ideia de que a polícia é menos ágil quando são eles que se queixam de violência doméstica e não elas.

Nestas acções, Célia Posser também ouviu “várias pessoas a dizer que as mulheres já estão esclarecidas, já estão a tentar pôr-se em pé de igualdade com os homens e que eles não gostam”. “No Príncipe, por exemplo, ouvimos polícias a dizer: ‘Este projecto é só direitos das mulheres e elas estão a conhecer direitos que não deviam conhecer!’” Parece-lhe que a tónica tem de ser posta na equidade de género. “Quando se diz ‘direitos das mulheres’, os homens sentem-se um bocado intimidados.” Ora, “não se pode falar de equidade de género sem incluir os homens. Eles também têm que saber o que é isso dos direitos das mulheres. Não é só luta contra a violência doméstica, é acesso a saúde sexual e reprodutiva, acesso a educação, emprego, participação política.” Para que as mulheres tenham mais participação na vida pública, os homens têm de ter mais participação na vida privada.

Foto
Célia Posser Dário Paraíso

“Estes dois anos serviram para consolidar parcerias, tanto com o Estado são-tomense, através do Instituto para a Promoção da Igualdade e Equidade de Género, como com as organizações da sociedade civil que trabalham no domínio dos direitos humanos”, concluiu Fátima Proença, presidente da ACEP, na conferência final da acção Direitos das Mulheres - conhecer, capacitar, sensibilizar. “Não podemos encarar este evento como o fim de tudo. Acaba o financiamento, mas fica a vontade, ficam recursos humanos capacitados, ficam materiais, ficam as parcerias que são muito importantes para continuar.”

Fora deste universo, outras vozes se levantam. A economista Janaina do Espírito Santo, de 27 anos, escreve sobre direitos das mulheres nas redes sociais. Fala de assédio sexual, de pressão social para encontrar um parceiro e procriar e de outras formas de violência simbólica de que se queixam mulheres  do mundo inteiro. Há pessoas que a atacam. Homens, sobretudo. “De certa forma, vêem a sua masculinidade ameaçada pelas minhas palavras”, diz ela. “Não gostam do que digo ou não gostam de me ver dizer o que digo. São contra, não concordam, apesar da realidade estar à vista de todos.”

Janaina do Espírito Santo assume-se como feminista. Não conhece muita gente que o faça, mas tem amigas que têm um discurso claramente feminista. “Acho que as feministas de São Tomé e Príncipe estão dentro do armário. Estão dentro do armário e precisam de sair dele”, remata.

O P2 viajou a convite da ACEP

Sugerir correcção
Ler 3 comentários