Domingos Tavares: “A arquitectura da Escola do Porto nunca seguiu ao sabor das modas”

António da Silva e Correia da Silva são um engenheiro e um arquitecto que deixaram obra no Porto e na Região Norte entre o final do século XIX e a primeira metade do seguinte. Duas figuras que Domingos Tavares veio agora desvendar para melhor se conhecer as raízes de uma Escola que não pactua com “rupturas fantasistas”.

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Domingos Tavares foi director da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto Joana Gonçalves
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Professor jubilado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e ex-director desta instituição, Domingos Tavares (n. Ovar, 1939) tem-se dedicado ultimamente à investigação da(s) história(s) da arquitectura, com particular atenção às figuras que trabalharam na região do Porto e Norte do país. António da Silva (1853-1909), um engenheiro-arquitecto que projectou palacetes e “casas de brasileiro”, e Correia da Silva (1880-1963), autor do edifício da Câmara do Porto e do Mercado do Bolhão, foram os temas dos seus livros mais recentes, publicados no espaço de cerca de um ano (edições Dafne, 2016 e 2017). E a oportunidade para conhecer melhor uma época que, de algum modo, significa a pré-história da aclamada Escola do Porto.

Depois de Correia da Silva. Arquitecto Municipal [2016], o seu livro mais recente incidiu sobre outra figura que marcou a arquitectura no Porto na viragem dos séculos XIX-XX, António da Silva. Esta cidade continua a ser o seu campo privilegiado como investigador e historiador da arquitectura.

O meu interesse é pela arquitectura enquanto maneira de pensar. Como pensam os arquitectos e o que é arquitectura? O problema pôs-se-me na qualidade de professor. Porque, quando se faz arquitectura, faz-se o que se considera correto, mesmo se não se dá satisfação aos outros; quando se ensina, tem de se explicar. O tema da compreensão do fenómeno da arquitectura moderna em Portugal surgiu-me num trabalho colectivo em 1983, quando, em Lisboa, foi organizada a exposição Depois do Modernismo, na Sociedade Nacional de Belas Artes, numa altura em que o pós-modernismo aparecia com grande pujança no quadro da arquitectura europeia, e até na norte-americana. Na altura, convidaram sete arquitectos do Porto para participar. Então reunimos e perguntámo-nos: “Pós-modernismo? Que história é esta?”. Era sempre aquela velha questão: Porto-Lisboa; Lisboa-Porto…

Quem é que tinha sido convidado, do Porto?

O Álvaro Siza, o Alexandre Alves Costa, o Alcino Soutinho, o Sérgio Fernandez, o Adalberto Dias, o Eduardo Souto de Moura e eu.

Fernando Távora, não?

O Távora não era de ir assim com a rapaziada nova… Então nós ficámos um pouco a pensar sobre o que fazer. “Vamos apadrinhar aquela corrente e aquela gente?”

Isso significava alguma desconfiança perante os meios da arquitectura de Lisboa?

Claro. Eu estive dois anos, como estudante, na Escola de Belas Artes de Lisboa. Uma boa parte dos intervenientes naquela história tinham sido meus colegas. E eles tinham uma característica muito comum: a presunção de que estavam sempre por cima, e sempre na moda. Faziam uma arquitectura de casaquinho azul com botões dourados, porque isso é que ficava bem na sociedade lisboeta.

Está a caricaturar a imagem do pós-modernismo.

Exactamente. E nós decidimos que íamos participar na exposição, mas de uma forma diferente. Organizámos um quadro com uma sucessão de fotografias e um texto explicando o que era a arquitectura portuguesa, começando no final do século XIX, princípio do século XX. Fazíamos uma batida até ao Siza, nomeadamente com uma imagem do projecto dele em Caxinas [Vila do Conde, Complexo Vila Cova, 1970-72]. Era um texto doutrinário.

Um Manifesto da Escola do Porto?

Era uma espécie de manifesto, sim. Da minha parte, vinha muito na continuação do texto que eu tinha preparado em 1980 e saiu depois no livro Da Rua Formosa à Firmeza [Escola de Belas Artes do Porto, 1985]. É um pouco sobre a firmeza do carácter e da personalidade das gentes do Porto. A arquitectura era a expressão dessa firmeza de carácter, e não propriamente uma coisa ao sabor das modas.

Está aí a diferença relativamente à Escola de Lisboa?

Não. A minha teoria tem mais a ver com a cultura de cidade, e não tanto com os arquitectos. Parto do conhecimento de uma história familiar, do avô da minha mulher, que era de Aveiro, onde tinha uma loja de ferragens e drogaria junto à Câmara, um comerciante respeitado na terra. Ele dizia que tinha a máxima confiança nos comerciantes do Porto: “Não falham, não é preciso fazer um contrato, o que a gente combinar, é seguro”. Isto entronca na cultura de cidade, da burguesia portuense, que é muito sólida, respeitadora dos contratos e dos negócios, na maneira de fazer e de pensar. Pouco dada às rupturas, se elas vierem prejudicar este tipo de relação cultural que se estabelece. E os arquitectos eram filhos destes personagens: o pai de José Marques da Silva, embora canteiro, era um comerciante de pedras de mármore para os cemitérios; e o pai do Correia da Silva, embora tenha inicialmente sido – supõe-se – pedreiro, vendia panos... É sempre esta gente que está na formação de uma cultura de estabilidade. Por isso, a arquitectura do Porto não é de rupturas fantasistas, mas de reconhecimento da novidade constante, muito adepta e aberta ao internacional na medida em que esse seja um factor de vantagem. Quando não é, deixa cair e segue em frente.

Em 2016, nas conferências a assinalar o centenário do início da construção da Avenida dos Aliados, falou da dificuldade em encontrar informação fidedigna sobre a obra de Correia da Silva…

Porque há um hiato na carreira dele. Não se sabe o que andou a fazer quando chegou de Paris, em 1903, até entrar para os serviços da Câmara do Porto. Mas também me interessei por Correia da Silva por simpatia face ao projecto do Mercado do Bolhão, uma obra de referência.

Foi nessa investigação, e também no trabalho que dedicou às “casas de brasileiro”, que se cruzou com António da Silva. Que importância atribui a este arquitecto, que teve formação de engenheiro, e a Correia da Silva no contexto da arquitectura do Porto.

Correia da Silva era um arquitecto das Beaux-Arts. Aprendeu, em Paris, a ser parisiense. Tal como Marques da Silva. Isto corresponde ao movimento do neobarroco, à arquitectura que então se fazia em Paris e que tem na Ópera [inaugurada em 1875] a referência principal. E Correia da Silva estava em Paris aquando da Exposição Universal de 1900: é o tempo do Petit e do Grand Palais, das estações do caminho-de-ferro, toda aquela espectacularidade do neobarroco. No regresso ao Porto, ele reproduzia essa sabedoria adquirida, essa convicção, produzindo uma arquitectura da linha neobarroca, de espírito internacional. Não é uma coisa que se reporte às práticas tradicionais portuguesas. Surgia, então, uma ruptura. Já António da Silva era mais velho – morreu em 1909. Engenheiro de formação, só fez arquitectura. Os primeiros projectos dele que consegui identificar são de 1897. Mas, curiosamente, já são muito bem acabados. São a expressão da arquitectura ecléctica, com referências históricas, como a utilização de torreões – as torres que marcam muito as “casas de brasileiro”, porque são uma marca no terreno: “Aqui estou eu!” –, com os miradouros em altura para ver para longe.

Este período que tem vindo a estudar, o primeiro quartel do século XX, permite-lhe dizer que o que normalmente designamos como Escola do Porto pode remontar a essa altura, ou só devemos falar dela a partir de Carlos Ramos? E que o que se faz nessa altura, nomeadamente com Marques da Silva, já tem alguma especificidade e alguma diferença relativamente a Lisboa?

É um bocadinho difícil esclarecer isso. Uma vez ouvi o António Cardoso [especialista em Marques da Silva] chamar a atenção para que enquanto o Ventura Terra, em Lisboa, produzia arquitectura para o Estado, fazia obra pública, o Marques da Silva só fez obra particular, não tendo encomenda do Estado, além dos liceus. Eles eram amigos, estudaram juntos em Paris, mas, no regresso, Terra foi para Lisboa porque engatou um trabalho lá – a remodelação do Palácio de São Bento. Marques da Silva não o fez porque quando concorreu para a reconstrução do Mosteiro dos Jerónimos levou sopa e regressou ao Porto. Mas ele tinha uma relação de origem muito forte com o Porto. Na verdade, há essa especificidade: em Lisboa, está-se próximo do poder, o trabalho é mais estabilizado, a atitude que se toma tende a ser menos criativa. E essa proximidade com o poder leva a que seja preciso lutar pelas coisas, ser pouco solidário com os colegas na disputa dos projectos. As habilidades típicas de todas as profissões.

Marques da Silva estabelece então já uma marca específica da arquitectura do Porto.

Marques da Silva e os que se seguiram. Temos os jovens arquitectos que trabalharam na ESBAP com Carlos Ramos: José Carlos Loureiro, Fernando Távora, Arnaldo Araújo, Lixa Filgueiras... E outras personalidades importantes na arquitectura da cidade, como Januário Godinho (com a sua admiração por Frank Lloyd Wright, num certo romantismo moderno); ou Arménio Losa (com o seu racionalismo à maneira do Movimento Moderno). Mas o que queriam estes arquitectos? Queriam ser bons profissionais, realizar bem, independentemente do feitio adoptado. Há um elemento mais importante do que a forma escolhida, que integra os princípios de qualidade e de competência. O que melhor caracteriza a obra dos arquitectos do Porto é essa preocupação de ser sabedor, eficaz, competente, de produzir trabalho qualificado.

E aquela ideia de que é o desenho, e a relação quase familiar no interior da Escola...

A questão do desenho é mais recente. Os arquitectos sempre desenharam, como é evidente. O que acontece é que na história da Escola de Arquitectura do Porto, depois de passado o período das Beaux Arts, a chegada de Carlos Ramos introduz uma aproximação ao modelo rigoroso da Bauhaus. Ele tinha admiração por Walter Gropius, a vontade de ensinar uma arquitectura de rigor. Isso introduziu na Escola do Porto uma aproximação ao Movimento Moderno. E, claramente, era isso que os jovens queriam. Os nossos arquitectos começaram a mudar para uma posição mais moderna, mas não havia uma corrente específica. Com a história do SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local], logo a seguir ao 25 de Abril [de 1974], houve aquele grande “estoiro” político. Os jovens estudantes, que já tinham passado por crises tremendas entre 1962 e 1969, com greves e outras movimentações, estavam muito politizados. Na Escola de Belas Artes, do lado da Arquitectura, falava-se muito de responsabilidade social.

E como é que isso entronca com a questão do desenho?

A seguir à Revolução, em Setembro de 74, Nuno Portas, no Governo, lança o SAAL e telefona aos amigos: “É preciso fazer qualquer coisa, vamos em frente”. E a arquitectura da Escola de Belas Artes saltou toda, com um nível de politização violentíssimo. Resultado: a Escola paralisou completamente. E aqui há dois ou três personagens que têm um papel fundamental: Siza e Soutinho serão os mais conhecidos. Criou-se então um conflito entre as tendências mais técnicas e as de acção consciencialização politica. O Alexandre [Alves Costa], com o Távora, apontavam para esta segunda via.

As discussões dessa altura eram mais políticas do que estéticas.

Eram razões políticas, basicamente. Mas importa ressalvar uma particularidade: apesar das divergências ou discussões nas reuniões de coordenação, ou nas brigadas do SAAL, a malta era amiga. Siza dizia: “Quem fizer a primeira casa, marca o território”, contestando a ideia dos que achavam que primeiro era preciso criar uma dinâmica política junto das populações. Eu conheço isso muito bem, porque estava no grupo do Siza. O problema era o seguinte: “Nós só vamos em frente nestas operações SAAL se soubermos projectar. Sem isso, pura e simplesmente somos corridos. Se os interessados nas habitações começarem a considerar que isto é tudo uma aldrabice, lá vai a política e lá vão as casas – nem uma coisa nem outra”. A saída era fazer bons projectos, que correspondessem às necessidades reais das pessoas. Alguns, como o Soutinho, o Rolando Torgo – um tipo formidável, mas muito introvertido e sereno –, ou o Siza, começaram a mostrar obra. Verificou-se então o retorno à Escola, porque era preciso saber desenhar. E quem pontuou nisto? Siza, porque desenha de uma forma absolutamente espantosa. Portanto, a ideia da “Escola do Desenho” resulta desta circunstância, e da evidência que ganham os que desenham bem, que usam o desenho como base para o desenvolvimento da competência profissional ao nível da arquitectura.

Actualmente faz algum sentido, essa distinção entre a Escola do Porto e a de Lisboa?

A distinção ainda faz sentido, enquanto escola. Mas já não é a mesma coisa, porque a de Lisboa é uma escola maior do que a do Porto, tem muita gente… A relação entre as pessoas é mais superficial e simultaneamente mais agressiva. Há muita competição. Na Escola de Lisboa, ressaltam, por vezes, personalidades, mas não ressalta a Escola como grupo. E quanto a essas personalidades, já não é tão nítido falar de diferença – até dizemos, por graça, que há lá arquitectos que são mais do Porto do que de Lisboa: o Gonçalo Byrne, o Carrilho da Graça, os Aires Mateus...

E agora há também a Escola de Coimbra. Acha que esta, que agora completa os 30 anos, já conquistou a sua identidade?

A Escola de Coimbra é uma extensão da Escola do Porto, mesmo que a gente não queira. Eu estive com o Távora e com o Alexandre na comissão instaladora – e a mesma equipa esteve, depois, na instalação da Escola do Minho. Qual era a nossa estratégia? Era convocar como professores da casa gente do Porto e de Lisboa, para que Coimbra fosse uma espécie de intercepção de duas maneiras diferentes de pensar a arquitectura.

Era para fazer as pazes entre Lisboa em Porto?

Não. Era para encontrar uma terceira via, ou algo desse género.

Do que conhece das obras dos arquitectos de Coimbra, vê aí já alguma marca identitária?

Na minha opinião, os jovens arquitectos que vão aparecendo saídos da Escola de Coimbra têm mais semelhança com o Porto do que com Lisboa.

 

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