“O deserto vem por aí abaixo”

As folhas das alfarrobeiras caem como se fosse Outono. No barrocal a secura abre gretas na terra ressequida. À falta de erva, as cabras roem carrascos e comem feno à manjedoura.

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“Nas cidades, enquanto a água correr nas torneiras, não se olha para o campo”, lamenta José Miguel

As folhas das alfarrobeiras estão ficar pálidas, e muitas já não se aguentam de pé nos ramos das árvores. Ao caírem no solo, deixam a marca de uma região a caminho da aridez. “O deserto vem por aí abaixo”, diz José Miguel, pastor de cabras, no barrocal algarvio. O furo que abastece de água o rebanho, de 140 animais, há cinco anos, enchia os depósitos, em duas horas, agora são precisos três dias para extrair o mesmo volume: “Corre um fiozinho”, descreve o jovem agricultor, de 37 anos.

A propriedade fica próxima da ribeira de Algibre, por onde passa o principal aquífero da região Querença/Silves — 317 quilómetros quadrados de águas subterrâneas — que escoam para o mar, por entre os favos das grutas das rochas calcárias. À superfície, o pomar de sequeiro — alfarrobeiras, oliveiras e medronheiros — mostra na folhagem a sede que sente nas raízes. “Nas cidades, enquanto a água correr nas torneiras, não se olha para o campo”, lamenta, o jovem que guarda rebanhos e sonhos de esperança. Os que se passaram pela crise de falta de água em 2005 — quando uma  grande seca se abateu sobre o país, atingindo de forma dramática o sul - poderão pensar que se trata apenas de mais um ciclo da natureza que se repete. Mas há novos dados. As culturas intensivas (citrinos, abacates e frutos vermelhos) aumentaram, e muito, mas não estão quantificadas. Motivo, justifica a direcção a direcção regional de agricultura, a actividade agrícola não está sujeita a licenciamento, a menos que peça apoios a dinheiros públicos.   

José Miguel licenciou-se em engenharia de produção animal, em Santarém, nasceu em Évora, mas acabou por se fixar no barrocal algarvio para criar cabras. A falta de emprego, há oito anos, trouxe-o de regresso à terra dos avós, em  Benafim,  concelho de Loulé. A mulher, Beatriz Gonçalves, formanda em engenharia alimentar, alinhou na aventura: “Viemos guardar cabras”, diz, de forma orgulhosa.

Nesta altura do ano, se a chuva tivesse chegado na época, os animais estariam nos campos a “petiscar” as plantas silvestres que fazem a diferença, no gosto que dão ao leite da cabra da” raça algarvia”. Assim, o que acontece é que a erva não tem mais de dois ou três centímetros e até os carrascos as cabras já roeram. A alimentação passou a ser ministrada de forma doméstica, à manjedoura: comem fenos, dentro dos pavilhões. “Ainda estamos a aguentar as coisas, mas está a ficar muito complicado”, desabafa o agricultor, apontando para as gretas que a secura abriu na terra vermelha.

A imagem não fica muito longe das zonas pré-desérticas do norte de África. “Parece que estamos em pleno Verão”, desabafa. A água que serve a exploração agrícola é captada a 164 metros de profundidade, num lençol que fica a cerca de meia centena de metros abaixo do nível do aquífero Querença-Silves. A região dispõe de um sistema de 17 aquíferos (este é o maior), mais duas grandes barragens para abastecimento público, geridas pela empresa Águas do Algarve-Odelouca, no Barlavento; Odeleite-Beliche, no Sotavento. “A situação é grave, se não chover”, reconhece  a porta-voz da empresa, Teresa Fernandes. As incertezas adensam-se, mas ainda não se conhecem medidas para enfrentar uma seca como a de 2005, quando as câmaras desataram a fazer furos para alimentar a população.

O hidrogeólogo José Paulo Monteiro, da Universidade do Algarve, acompanhou a evolução do aquífero Querença-Silves na última grande seca. “Os consumos, entretanto, duplicaram”, diz, enfatizando a necessidade de “uma boa gestão, que conjugue o uso das águas de superfície com as subterrâneas”. Quem mete as mãos na terra e lê os sinais da natureza acha que a situação é deveras preocupante: “Nos últimos três anos não tem chovido praticamente nada, só uns pingos”, diz Luís Lima, em Esteval dos Mouros-Benafim, acrescentando que, neste período, o nível médio dos aquíferos baixou, em média, 20 a 30 metros. “Estamos numa zona de infiltração máxima, mas a água escorre para o mar - faltam barragens para estancar a desertificação, de norte para sul”, enfatiza. O fenómeno da rapidez com que as águas desaparecem nas ribeiras, deixando os leitos secos, tem uma explicação: “É normal, dadas as características geológicas da zona - a infiltração é de 60 a 70 por cento”, diz José Paulo Monteiro, exemplificando com o aquífero Querença-Silves. 

Debaixo dos pés de Luís Lima, segundo os investigadores, corre um rio subterrâneo, só que o nível freático está a baixar de forma assustadora. “Basta olhar para as folhas das alfarrobeiras, amarelas”, diz, lamentando o facto do stress hídrico “não parecer estar a ser levado a sério “. O filho Ricardo, tal como ele engenheiro civil, fez-se agricultor para preservar a memória da família. “Tínhamos umas parcelas, cerca de 30 hectares, o que estamos a fazer é reabilitar o pomar de sequeiro - alfarrobeiras, amendoeiras e figueiras, não enveredamos pelas culturas intensivas”.

José Miguel não se arrepende da opção que fez, mas tem preocupações redobradas, por causa das alterações climáticas. À escassez de água para alimentar o gado, junta-se a falta de fenos para os animais, porque as sementes lançadas à terra não desabrocharam. Quando se colocou a questão de fazer um projecto para criar ovelhas ou cabras, não teve dúvidas: “A cabra é mais inteligente, gosto desta raça desde criança”. Durante oito anos, com a mulher, dedicou-se a pastar o gado. Agora que a exploração deveria entrar em velocidade de cruzeiro, já com ordenha mecânica - preparam-se  para abrir uma queijaria - rogam aos deuses que mande chuva e ao Governo para que retome o projecto de mais uma barragem na zona central do Algarve.

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