2017, o ano em que a “demonização política” se popularizou

Relatório de 2017 da associação de defesa dos direitos humanos destaca os confrontos motivados pelo discurso populista global, mas elogia os movimentos e protestos criados.

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Minoria rohingya foi uma das maiores vítimas em 2017, assinala a organização Jorge Silva

A retórica populista, “cega de ódio e medo”, contra grupos mais vulneráveis e protagonizada por líderes mundiais, é responsável por parte da intensa tensão e conflito que marcaram o último ano, diz a Amnistia Internacional no seu relatório anual de 2017.

No entanto, a organização não-governamental destaca também o movimento “cada vez mais forte” de activistas, que procuram contrariar a “espiral de opressão” através da justiça social e que trazem por isso esperança na reversão das violações de direitos humanos. “O último ano mostrou-nos o que acontece quando a política da demonização se populariza”, resume o secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty.

A expressão “demonização política” é repetida no prefácio do relatório assinado por Salil Shetty. Um dos resultados desta violenta persecução durante o ano passado foi a “horrorosa campanha militar” que conduziu à perseguição da minoria rohingya pelo Exército birmanês.

A violência indiscriminada sobre estes civis, com a passagem destrutiva do Exército por aldeias inteiras — e que obrigou à fuga de mais de 650 mil pessoas —, foi classificada pela Organização das Nações Unidas de limpeza étnica. “O episódio ficará para a História como mais um testemunho do catastrófico falhanço do mundo em lidar com as condições que criam o terreno fértil para estes crimes atrozes acontecerem”, aponta o secretário-geral da Amnistia. Os sinais, diz, estavam todos lá. “Discriminação massiva e segregação tornaram-se norma num regime que equivale ao apartheid e, durante muitos anos, os rohingya foram demonizados e foram-lhes tiradas as condições básicas necessárias para viver com dignidade. A transformação da discriminação e demonização em violência é tragicamente familiar e as suas consequências não podem ser desfeitas”, disse.

No entanto, relatório aponta também críticas ao resto do mundo. “A batalha pelos direitos humanos não está definitivamente ganha em nenhum lado nem em nenhum lugar”, lembra Shetty. Nesta equação entra a ressalva de que “nada nos garante que seremos livres para nos juntarmos num protesto ou numa crítica aos nossos governos". Além disso, a incerteza de uma resposta da segurança social no caso de velhice ou incapacidade, a poluição que deixamos para gerações futuras e a incapacidade de encontrarmos empregos ou de comprarmos uma casa também são direitos fundamentais em risco assinalados pela Amnistia.

O secretário-geral da Amnistia aponta também responsabilidade aos “líderes de países ricos” que respondem com uma “insensibilidade absoluta” a graves crises - conflitos armados alimentados pela troca comercial de armamento, a guerra no Iémen, exacerbada pelo bloqueio da Arábia Saudita, a Síria e o Iraque, ou os crimes de Direito internacional que resultam numa massa de refugiados do Sudão do Sul. 

O exemplo citado é o da resposta à crise de refugiados, tratados “não como seres humanos com direitos, mas como problemas a serem desviados”. Salil Shetty destaca a acção do Presidente norte-americano, Donald Trump, na tentativa de proibir a entrada de cidadãos de países com maioria muçulmana nos EUA, como exemplo do “transparente movimento de ódio”.

Os líderes europeus também não passam com nota positiva. O relatório lembra as eleições na Áustria, França e Alemanha, onde candidatos com discursos dirigidos contra imigrantes, refugiados e minorias religiosas ganharam expressão. É ainda criticada a actuação da França na resposta à crise de refugiados, enquanto o Governo continua a vender armas a países que as usam como uma ferramenta de opressão contra os direitos humanos.

Ainda na questão dos refugiados, o relatório aponta o dedo também ao Governo australiano, que manteve requerentes de asilo em condições semelhantes às de "uma punição em vez de protecção". O mesmo acontece com a população índigena do país, cuja protecção continua a ser negligenciada.

Também a ameaça e morte de activistas e jornalistas no México é destacada no relatório anual. Os dados dizem que duas em cada três mulheres mexicanas foram vítimas de violência. Também na China vários activistas foram detidos e perseguidos. Um deles, o Prémio Nobel da Paz Liu Xiaobo acabou por morrer entregue à custódia do Governo chinês

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O activista e Prémio Nobel Liu Xiaobo morreu com 61 anos, sob a custódia do Governo chinês Audun Braastad/LUSA

Já na Colômbia, apesar do histórico acordo de paz entre as autoridades colombianas e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) — que valeram o Nobel da Paz de 2016 ao Presidente Juan Manuel Santos — os conflitos armados e a violência continuaram a ser uma realidade diária para milhares de pessoas no país, onde as comunidades agrícolas foram as maiores vítimas.

A crise na Venezuela também foi destacada como uma "das maiores na história recente". A falta de alimentos e medicamentos levaram já milhares de pessoas às ruas, a liberdade de expressão está comprometida e existem detenções arbitárias e relatos de tortura e abusos sexuais contra manifestantes.

Não obstante, a organização sublinha a resposta de vários movimentos que mostraram “a vontade de as pessoas batalharem pelos seus direitos e pelos valores que querem ver no mundo. Novas e fortes ameaças deram oxigénio fresco ao espírito dos protestos”. Na Polónia, as ameaças à independência das autoridades levaram as pessoas para a rua. Em Março, a marcha pelos direitos das mulheres nos Estados Unidos tornou-se numa das maiores marchas da história norte-americana. No Zimbábue, milhares de pessoas marcharam em Novembro para exigir eleições justas em 2018. Na Índia uma onda de islamofobia recebeu uma onda de protestos. O ano encerrou com o movimento #MeToo, cuja escala se tornou global, com uma vaga de denúncias de assédio e abuso sexual a listarem alegados (e alguns já confessos) predadores e assediadores.

O secretário-geral da Amnistia conclui o prefácio do relatório lembrando os 70 anos volvidos da assinatura de Declaração Universal dos Direitos Humanos — que serão assinalados em Dezembro deste ano — como incitamento à igualdade e dignidade. “As fronteiras artificiais erguidas pelas políticas de demonização conduziram-nos ao conflito e brutalidade, a uma visão da humanidade governada por interesses pessoais” permitida por “demasiados líderes” para o cumprimento da sua agenda.

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