Filhos de um deus menor à espera de luz em São Tomé

Presidente da República começa nesta terça-feira uma visita de Estado a este país onde a prevalência da surdez está muito acima da média e onde a cooperação portuguesa ainda faz muita diferença.

Fotogaleria
Cortesia Instituto Marquês de Vale Flor
Fotogaleria
Cortesia Instituto Marquês de Vale Flor
Fotogaleria
Cortesia Instituto Marquês de Vale Flor

Agitam as duas mãos abertas para dizer "olá", emitem alguns sons imperceptíveis e vão falando entre si por gestos com uma excitação visível, mas quase silenciosa. Num compartimento escuro, quente e húmido aonde ainda não chegou a electricidade, cerca de duas dúzias de jovens são-tomenses surdos sabem que esta agitação que lhes entra pela sala de aula antecede a visita de Estado do Presidente da República de Portugal a São Tomé e Príncipe, que começa esta terça-feira.

Marcelo não vai visitar a Fundação para o Desenvolvimento, instalada num imóvel muito degradado, mas de tijolo e cimento, neste bairro da zona da Trindade onde só o nome – Bombom - afasta a aura de pobreza das ruas de esgotos a céu aberto e das casas de madeira palafitas, com panos coloridos a fazer de portas e janelas. Mas vai ouvir falar desta obra, pioneira em África, que nos últimos anos trouxe esperança à vida dos surdo-mudos de São Tomé. E são muitos. Neste país, a prevalência da surdez neuro-sensorial é muito elevada: afecta cerca de 3% da população, quando a nível mundial a média é de três em cada mil.

Em África, criança que não trabalha é deixada à sua sorte. “Os professores mandavam-nos para casa, a família deixava-os pelos quatro cantos da casa ou a fazer pequenos serviços nos quintais”, explica Avelino Espírito Santo, responsável da Fundação para o Desenvolvimento que anima a primeira e única escola de surdos do país. Votados à marginalização, sem meios para poder comunicar, os mais de cinco mil surdos num país de 190 mil habitantes representavam um grito que ninguém sabia ouvir.

Tudo começou a mudar a partir de 2010, quando arrancam em São Tomé as primeiras missões de otorrinolaringologia no âmbito do programa Saúde para Todos, desenvolvido pelo Instituto Marquês de Vale Flor (IMVF) e apoiado pela cooperação portuguesa. Desde o início destas missões que a equipa do prof. João Paço se apercebeu da extraordinária prevalência da surdez e começou a investigar as causas. Cristina Caroça, assistente de João Paço, conseguiu comprovar a forte ligação desta deficiência inata à rubeóla da mãe durante a gestação e acabou por fazer o doutoramento sobre essa relação.

O trabalho desenvolveu-se a partir daí em diferentes áreas para dar resposta ao problema: medicina, educação e reinserção social. Desde logo, na prevenção: no final do ano passado, a vacina contra a rubéola entrou no Plano Nacional de Vacinação do país com o apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS). O que, aliás, tem um custo insignificante - dois cêntimos por 10 doses - e, no entanto, ainda não acontece na esmagadora maioria dos países subsarianos, à excepção da África do Sul. “O que aconteceu em São Tomé foi um alerta, também para a OMS, para esta ligação à rubéola”, explica Ahmed Zaky, administrador executivo do IMVF.

Mas isso não chega. “Há toda uma geração, desde recém-nascidos a adultos, que precisam de integração e que exige ligação da medicina à educação”, acrescenta o responsável. Em 2013, esta instituição arrancou com a educação para surdos com o projecto Sem Barreiras. Para os mais pequenos, começou a fazer-se o diagnóstico precoce e a trabalhar a terapia da fala para evitar que chegassem aos três anos sem qualquer capacidade de desenvolver a oralidade, incentivando o ensino pré-escolar. Iniciou-se o rastreio cognitivo das crianças dadas como surdas e a colocação de próteses em casos de perda de audição.

Mas uma das apostas-chave deste projecto desenvolvido entre 2013 e 2015 foi o desenvolvimento e reconhecimento da língua gestual são-tomense, com a publicação do seu primeiro dicionário, a formação de formadores e a integração desta linguagem no curriculo do ensino especial. O primeiro dicionário de língua gestual de São Tomé e Príncipe foi publicado em 2014 pela editora da Universidade Católica Portuguesa, mas desde então já evoluiu bastante, e esse é um dos objectivos da candidatura do IMVF para outros dois anos de projecto.

Agora, a ambição é maior. Para ir ao encontro daquilo que já faz a Fundação para o Desenvolvimento - que hoje tem 70 alunos inscritos na escola de surdos onde se ensina a ler, escrever e falar a língua gestual, mas com o objectivo de os vir a preparar para o mercado de trabalho –, o Sem Barreiras II propõe-se “incentivar a autonomia da população surda e São Tomé, promovendo a sua inclusão social criando oportunidades de formação profissional”.

Sebastião tem 26 anos, é psicólogo, português e surdo desde que nasceu. Há oito meses desembarcou em São Tomé para ajudar pessoas que nasceram como ele a ter oportunidades como ele também teve: “Uma educação de qualidade, competências profissionais e outras oportunidades de vida”. Este professor que sabe do que fala só pede uma coisa: recursos virtuais, visuais, para melhor poder ensinar quem não ouve, mas vê. É quando abre o computador que os alunos mais vibram. Mas só dura o tempo da bateria.

A jornalista viajou num avião da Força Aérea Portuguesa

Sugerir correcção
Comentar