Produção de cannabis industrial está a aumentar em Portugal

Ministério da Agricultura estima que se tenha cultivado uma área de 14,2 hectares nos últimos três anos. As fibras são usadas, por exemplo, para fazer papéis resistentes, painéis isolantes, argamassas leves, biocombustíveis e têxteis.

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Reuters/STRINGER

Portugal está a despertar para o cultivo industrial de cânhamo, uma variedade da cannabis com baixo teor de tetrahidrocanabinol (THC), a principal substância psicoactiva da planta. Flavien Casal Ribeiro, produtor e consultor luso-francês, diz que vem cada vez mais a Portugal orientar interessados em investir.

De acordo com o Ministério da Agricultura, houve dois pedidos para cultivar um total de 100 quilos de sementes em 2015. Volvido um ano, cinco pedidos, desta vez para 225 quilos. Já no ano passado, a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária recebeu sete pedidos para um total de 250 quilos. Considerando a densidade normal, estima que nestes anos se tenham plantado 14,2 hectares.

Há que evitar confusões logo à partida, adverte Flavien Casal Ribeiro. Embora seja muito parecida com a cannabis usada para fins recreativos, tem diferente composição química: apresenta uma menor concentração de THC e uma maior concentração de cannabidiol (CBD), componente que neutraliza efeitos psicoactivos.

A cannabis industrial (ou cânhamo) é cultivada para aproveitamento de hastes e sementes. As fibras são usadas, por exemplo, para fazer papéis resistentes, painéis isolantes, argamassas leves, biocombustíveis, têxteis. E as sementes podem ser usadas para alimentação humana e animal (pássaros, sobretudo) e outros fins.

Enquanto a produção para uso recreativo é proibida, a produção para uso industrial está regulamentada desde 1999. “A cultura de cânhamo industrial tem vindo a ser alvo de crescimento exponencial nos países industrializados, não sendo alheio a tal facto as suas inegáveis vantagens ecológicas para além da sua rentabilidade”, lê-se no decreto regulamentar 23/99.

O cultivo de cânhamo já tinha sido uma realidade em Portugal. O pico de produção fora alcançado nos anos 1940. Depois, a cannabis entrara na lista de substâncias proibidas. E, no final da década de 90, o Governo entendia que importava clarificar as regras, “em sintonia com o disposto na legislação comunitária, de modo a restabelecer a confiança em tal cultura”. A confiança tarda em restabelecer-se. Só nos anos mais recentes começaram a aparecer os primeiros pedidos de cultivo.

Note-se que a cannabis usada para fins recreativos tem um teor de THC de 10% ou mais – análises feitas em laboratório já detectaram concentrações de 30%, o que tem gerado alertas das entidades competentes. A cannabis que é permitido cultivar não pode ter um teor de THC  superior a 0,2.  Se o fim é terapêutico/medicinal, há que pedir autorização ao Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde. Se o fim é industrial, o caminho é a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária, o organismo responsável pelo controlo e certificação de sementes de espécies agrícolas.

Segundo o Ministério da Agricultura, o agricultor tem de comunicar que variedade irá plantar e que lotes irá pôr na terra. Tem também de apresentar um boletim de análises do teor de THC. Depois de verificar toda a documentação, a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária solicita um inspector de qualidade de semente da Direcção Regional de Agricultura e Pescas. O inspector tem de verifique as embalagens e a respectiva etiqueta. E as autoridades têm de ser avisadas.

A variedade tem de estar inscrita no catálogo comunitário. A semente tem de ser certificada. A França é o principal produtor dessas sementes. Quem as comercializa é a Cooperativa Central dos Produtores de Sementes de Cânhamo da Aube. Os agricultores estão proibidos de resemear as suas própria sementes.

"É uma planta muito instável"

“A Direcção Regional de Agricultura e Pescas exige uma declaração da cooperativa de sementes de cânhamo de França”, recorda Flavien Casal Ribeiro. “Isso deve ser a nossa segurança. É uma planta muito instável.” Reage muito à exposição solar. O teor de THC pode subir, de forma inesperada.

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Flavien Casal Ribeiro é produtor e consultor

Há que ter cuidado. “Fazemos análises para ter a certeza que o nosso produto é legal”, afiança. “Estamos a falar de um nível muito baixo de uma molécula”, sublinha. Pode haver uma fiscalização de um momento para o outro. Se o teor de THC estiver acima do legalmente permitido, é um desastre.

“Há produções que são boas para fibras e que são desqualificadas por causa do nível de THC”, diz. Conhece quem tenha vivido essa experiência. Ocorrem-lhe dois casos no Norte de França. “Foi muito pouco. Foi 0,4% de THC. Não é nada”, considera. 

Flavien Casal Ribeiro nasceu em França. É filho de uma francesa e de um português, que se fixou em França na década de 1960. Primeiro, dedicou-se à jardinagem. Criou a Jardins de Flavien, em Forcalquier, Provence-Alpes-Côte d’Azur, França. Há quatro anos virou-se para a cânhamo. Criou a empresa Haute Provence Aromatiques. Fez vários cultivos em França e experimentou fazê-los em Portugal.

A ideia inicial, para Portugal, era produzir amendoeiras. Quando descobriu o interior do Alentejo, aquela terra parecia-lhe parecida com a sua, a Provença francesa. Já tinha o projecto de produção de cânhamo em França. “Estávamos em período de teste.” Porque não testar em Portugal?

O Alto Alentejo

Avançaram em 2015 no Alto Alentejo. “Era mais um teste em situação real”, conta. Um teste industrial. Fizemos experiências em três sítios com uma composição de solo diferente. Duas mais a Norte, que deram resultado, e uma mais a Sul, mais pequena, que não funcionou. Porquê? “Houve um problema humano”, responde. “O caderno de encargos não foi bem respeitado. É difícil um agricultor perceber que um estrangeiro vem para a sua terra, com sapatos e fato, dizer: você vai fazer essa cultura assim e assim, o calendário é este, a semente é esta.”

A produção de cânhamo tem as suas particularidades. Isso mesmo explicou Flavien Casal na Cannadouro, a feira do cânhamo que se realizou no ano passado no Porto. “Compreendo o entusiasmo de quem quer entrar neste mercado, mas não é fácil”, adverte agora, numa conversa com o PÚBLICO, numa das suas passagens por Lisboa. A primeira dificuldade é conseguir as sementes.

“Quando você quer entrar nesse mercado, a cooperativa não lhe vende logo a quantidade de sementes que você quer, porque vende primeiro aos antigos clientes”, salienta. “Telefona para lá. São pessoas muito simpáticas. Explicam tudo sem problemas. Você diz que quer sementes. E dizem-lhe: 'só posso dizer no fim de Fevereiro se tenho'. Pode ser tarde para começar a preparar tudo.” O cânhamo é uma cultura de primavera. Há que preparar bem o terreno. Há um tempo perfeito. “Nem antes, nem depois.”

Lembra-se da primeira experiência em França, 2014. “Compramos a um produtor em Itália que já tinha comprado muitas vezes”, conta. “Ele tinha sementes certificadas.” Uniram esforços. “No ano a seguir fizemos o pedido à cooperativa. Já foi mais fácil, porque já tinham ouvido falar de nós.”

Também lhe parece muito importante saber ouvir. “Não há muita gente que sabe bem como é que isso cresce”, diz. “Há muita informação falsa na Internet, que muita gente pensa que é verdadeira.”

Pode haver outra dor de cabeça, avisa ainda. “Há gente que promete que vai comprar a produção e depois não compra. Já tivemos essa experiência. Uma pessoa diz: ‘Quero isso, isso.’ E não quer. É só gente que quer entrar neste mercado, que quer estudar. Há muito barulho.”

A sua empresa, a Haute Provence Aromatiques, quer voltar a produzir em Portugal, com um parceiro português. Mas o que mais o tem trazido a Portugal é o serviço de consultadoria. Tem sido contactado por vários potenciais produtores de cânhamo – “quase todos estrangeiros residentes em Portugal”.  

Acredita que “Portugal tem muito potencial”. Pelo solo, pelo clima, mas também pela segurança. “Eu encontro gente com muitos sonhos. Eu encorajo. A planta é boa, mas não é assim tão fácil”, diz ainda. “O mercado tem de ser consolidado.” Parece-lhe que, para além de investir na produção de cânhamo, há que abrir caminho na transformação, o que permitiria obter o valor acrescentado.

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