“Nunca o amor romântico pode justificar a violência”

UMAR inquiriu mais de 4000 jovens, com uma média de idades de 15 anos. Para um em cada quatro a violência sexual no namoro é “natural”. Há mais a relatarem terem sido vítimas de violência e mais a legitimarem-na.

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"Ele persegue-me porque gosta muito de mim. Ela vê as minhas mensagens no Facebook porque não me quer perder". Estas justificações são algumas das que a presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), Maria José Magalhães, e as técnicas do programa Art'Themis + desta organização ouvem nos vários contactos que têm com jovens – nomeadamente nas 78 turmas com quem trabalham directamente. Percepções que já tinham e viram plasmadas no segundo inquérito nacional sobre violência no namoro.

“Na adolescência, achamos sempre que o amor romântico justifica tudo e os jovens defendem inúmeras situações com este ideal de que fazemos tudo por amor. Mas ele nunca, nunca pode justificar a violência”. É o alerta que Maria José Magalhães deixa, em declarações ao PÚBLICO, depois de ter apresentado nesta quarta-feira os resultados de um inquérito nacional a mais de 4000 jovens. Um em cada quatro acha “natural” que entre namorados haja violência sexual — forçar beijos em público, pressionar ou coagir para ter relações sexuais, por exemplo.

Os inquiridos têm 15 anos em média. Para muitos (40%), se alguém impede o namorado ou a namorada de se vestir de determinada forma, isso não é violência. Se numa discussão entre os dois há insultos, isso não é violência (25%). E também não o é uma agressão corporal se dela não resulta uma ferida ou uma marca (8%).

Isto é o que muitos jovens acham de diferentes situações que lhes são apresentadas em teoria. Tudo somado, “68,5% do total de jovens aceitam como natural pelo menos uma das formas de violência na intimidade”. O que, para Maria José Magalhães, espelha uma “legitimação social muito grande da violência”. Agravada com o facto desta naturalização ser ainda mais frequente naqueles que já foram vítimas (76,9%).

Mas na prática, se atendermos apenas aos cerca de 3000 jovens da amostra que dizem já ter tido “uma relação de intimidade”, mais de metade (56%) sofreram actos que configuram a violência no namoro.

Também ontem, Dia dos Namorados, a Associação Plano i apresentou os dados do Observatório da Violência no Namoro que já tinha adiantado ao PÚBLICO: desde Abril do ano passado recebeu 128 denúncias de jovens universitários, sobretudo raparigas, onde uma em cada dez vítimas relatava que foi ameaçada de morte por namorados ou ex-namorados. Os dados agora revelados pela UMAR "ilustram uma espécie de primeiro momento destas situações abusivas”, observa Maria José Magalhães, também professora na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.

Nas redes sociais

Os dois terços de jovens dos 4652 inquiridos que declaram já ter tido um “relacionamento amoroso” e que podem falar da sua experiência pessoal dizem isto: 18% relatam ter sido alvo por parte do parceiro de situações de violência psicológica; um em cada dez reporta “controlo” social (proibição de falar com certos amigos ou amigas, ou de vestir algum tipo de roupa, por exemplo); 6% declaram ter sido alvo de violência física.

E, “apesar de, neste estudo, participarem pessoas com idades muito jovens, a prevalência média de violência sexual é de 7%”, lê-se na publicação que resume os resultados obtidos. “Numa percentagem preocupante”, 5% dos jovens referem já ter sido pressionados pelo companheiro para ter relações sexuais.

Também a vitimação nas redes sociais tem dados “alarmantes”, que devem chamar a atenção para esta “nova forma de violência num relacionamento, que pode atingir um grande número de pessoas, sem grandes filtros”, nota Maria José Magalhães. Foram 12% os inquiridos que dizem ter sido vítimas. O mais frequente é entrar na conta de uma rede social sem autorização da vítima (20%). E “foram também colocadas questões sobre a partilha online de conteúdos íntimos sem autorização” (4%).

Prevenção nas escolas

Para todos os tipos de violência, o cerne da questão é a prevenção primária, diz a presidente da UMAR. Como? Nas escolas, através da educação para a cidadania, educação para a saúde e intervenção de profissionais especializados na matéria. “Se as crianças não crescerem com noções de respeito e de igualdade, serão também jovens sem formação crítica, sem uma capacidade de análise e de questionar a violência”, afirma. Aos educadores, diz, cabe estarem atentos, “perceber que esta pode ser uma situação muito grave” e procurar ajuda junto das organizações e entidades competentes. O que é válido tanto para a vítima, como para o potencial agressor.

Um acompanhamento especializado é fundamental, vinca. “Não vale a pena dar ralhetes. É preciso ir ao fundo daquela pessoa. Caso contrário a vítima com 15 anos - que ama muito e desculpa sempre o namorado - pode perpetuar comportamentos até ser uma vítima de violência doméstica. E o rapaz que a maltrata pode ganhar-lhe o gosto e ser agressor o resto da vida”, alerta Maria José Magalhães.

Eles legitimam mais

Preocupante continua também a ser a legitimação da violência, especialmente acentuada nos rapazes, sobretudo no que diz respeito à violência sexual. Por exemplo: enquanto 6% das jovens raparigas não identifica a pressão para ter relações sexuais como um comportamento violento, 22% dos rapazes também não.

“Isto é a interiorização por parte dos jovens daquilo que é a cultura patriarcal, sexista, misógina presente na sociedade, não só na portuguesa, da qual ainda não nos conseguimos afastar. Para além de terem este comportamento, eles – rapazes – são mais resistentes à mudança”, afirma a investigadora.

E dá como exemplo uma das discussões que a UMAR levou para uma das turmas com quem trabalha. “Ouvimos muito os rapazes dizerem que 'as mulheres gostam de sexo à bruta'. E perguntamos às raparigas se é verdade, elas dizem que não e os rapazes respondem: 'Vocês não percebem nada'. Isto é uma forma de desvalorizar a palavra e uma forma de não respeitar as mulheres que sobrevive."

É-lhe, ainda assim, óbvio que estes preconceitos não se fazem sentir da mesma forma que há quarenta ou trinta anos. “Algumas coisas estão a mudar. E o facto de alguns dos jovens reconhecerem que foram vítimas pode significar que estão mais conscientes e atentos - é como a questão das denúncias de violência doméstica", defende. É por isso que as autoras, ao compararem os resultados deste ano com os de 2017, não lêem que houve um agravamento da violência, apesar da situação percentual estar pior, quer em termos de legitimação da violência como de vitimação.

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