Para quando a descolonização das mentalidades?

O continente africano, na sua diversidade, produz conhecimentos e reflexões importantes para compreender os tempos injustos contemporâneos.

Descolonizar mentalidades é um dos desafios essenciais deste século.

No início de fevereiro uma peça televisiva da CNN, divulgada globalmente, denunciava o não cumprimento, por Moçambique, das sanções decretadas pela ONU à Coreia do Norte. As demonstrações militares de Pyongyang revelam que as sanções interditando a continuação da pesquisa nuclear não surtiram efeito. Este país possui hoje um arsenal nuclear militar testemunhado pelos ensaios de mísseis de longo alcance. Esta realidade levou ao endurecimento, em dezembro de 2017, do embargo. Como frisou a embaixadora norte-americana na ONU, a comunidade internacional “deve cortar relações comerciais com o regime, interrompendo todas as importações e exportações, e expulsar todos os trabalhadores norte-coreanos”.

Um relatório da ONU de setembro de 2017 citava 49 países (incluindo Moçambique) que supostamente colaboravam com Pyongyang, ignorando as sanções. Em resposta o Governo moçambicano garantiu defender o desarmamento nuclear, declarando-se aberto a colaborar com os peritos da ONU no esclarecimento da suspeita. Na peça, a CNN acusa Moçambique de se esquivar à aplicação das sanções, valendo-se de uma rede secreta de empreendimentos de pesca, funcionando como fachada dos negócios militares. Esta peça, como muitas outras produzidas no Norte Global, peca por não considerar os países africanos como parceiros de um diálogo global.

Os EUA têm liderado a campanha contra o regime de Pyongyang, posição fortalecida pela Administração Trump. Mas esta situação não é nova. A Africom, o comando militar dos EUA para a África, criado em 2007, controla as operações militares norte-americanas na maioria dos países do continente. Se a face pública da Africom é o apoio ao desenvolvimento, a sua missão real é “deter ameaças transnacionais, promovendo os interesses dos EUA, assim como a segurança regional, a estabilidade e a prosperidade”. Desde a anterior administração que a política norte--americana em relação a África tem tido como objetivos centrais o “fortalecer das instituições democráticas”, o “estimular do crescimento económico” e “o avanço da paz e da segurança”. Na prática, esta estratégia tem-se desdobrado em múltiplos engajamentos militares e pressões políticas dos EUA em várias regiões do continente.

No centro da peça da CNN está a já referida empresa de pesca, fruto de uma parceria entre os governos de Moçambique e da Coreia do Norte. A presença de dois arrastões de pesca no porto internacional de Maputo foi a prova apresentada pela CNN para suster a acusação de violação flagrante das sanções. Porém, como a agência de notícias moçambicana reportou, a empresa de pescas foi dissolvida, por ordem do Governo e em linha com a posição da ONU, antes de a CNN ter realizado a sua investigação, em dezembro de 2017, mas estes factos não foram tidos em atenção.

A Coreia do Norte mantém uma relação de amizade longa com Moçambique, país com que se solidarizou durante a luta anticolonial. Uma luta em que os EUA se posicionaram do lado do regime colonial português, desafiando as decisões da ONU sobre o direito dos povos africanos à autodeterminação. As acusações que a notícia divulgada pela CNN contém não só não dialogam com esta história recente, como reafirmam a política norte-americana de “quem não está connosco está contra nós”.

O problema é a informação parcial, sob a forma de acusações, apresentada como verdades. Longe de mim afirmar categoricamente que o Governo de Moçambique está isento neste caso. Mas cabe a qualquer meio de informação digno fazer um trabalho de qualidade, ouvir opiniões substantivas e não avançar com meias verdades. Os produtores de informação, incluindo os jornalistas, usaram factos para apoiar uma formação específica de poder. Porém, os factos não existem no vácuo; são “descobertos”, porque há interesse nisso, e a exposição dos factos procura dar resposta a determinadas preocupações. Se as preocupações mudam, é possível produzir factos diferentes e avançar com explicações alternativas. Esta crítica não significa que não podemos demonstrar ou provar que estamos perante um caso de boicote às sanções. Argumento apenas que a informação usada para demonstrar o suposto boicote por Moçambique das sanções é social e politicamente maleável. Assim se faz terrorismo informativo. Assim se continua a escrever sobre o continente africano, sem ouvir os seus atores.

O continente africano, na sua diversidade, produz conhecimentos e reflexões importantes para compreender os tempos injustos contemporâneos. Uma descolonização epistemológica, para ser efetiva, deve combater o apagamento generalizado dos atores políticos africanos e das suas contribuições para o conhecimento do mundo.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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