E se Portugal ganhasse em Berlim outro Urso de Ouro?

Berlim 2018 começa esta quinta-feira com três curtas nacionais a concurso e três longas no Forum — e o cinema que por cá se faz, diferente dos outros e com filmes muito diferentes entre si, continua a marcar presença nos grandes festivais. Com a possibilidade de Portugal trazer um terceiro Urso de Ouro consecutivo das curtas da capital alemã.

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A curta Madness de João Viana que estará a concurso dr
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Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude) de David Pinheiro Vicente que está em concurso dr
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Russa, de João Salaviza co-dirigida com o brasileiro Ricardo Alves Jr. que está em concurso dr
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A longa-metragem Drvo de André Gil Mata dr
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A longa-metragem Our Madness de João Viana
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A longa-metragem Mariphasa de Sandro Aguilar dr
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O realizador João Viana Nuno Ferreira Santos
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O realizador Sandro Aguilar Miguel Manso
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O realizador João Salaviza Miguel Manso
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O realizador André Gil Mata Nuno Ferreira Santos
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O realizador David Pinheiro Vicente dr

Diz o povo que “não há duas sem três” — e isso sobe a fasquia para David Pinheiro Vicente, João Salaviza e João Viana, os três realizadores portugueses com curtas-metragens a concurso na 68.ª edição do Festival de Cinema de Berlim, que tem início esta quinta-feira e se prolonga até ao próximo dia 25 de Fevereiro. No ano passado, Diogo Costa Amarante trouxe para Portugal o Urso de Ouro da Curta-Metragem por Cidade Pequena, em 2016 tinha sido Leonor Teles a vencer o prémio máximo com Balada de um Batráquio (depois de, em 2012, João Salaviza o ter ganho com Rafa). E se o Urso de Ouro fosse, pelo terceiro ano consecutivo, entregue a Portugal?

Não é descabido pensá-lo, mesmo num ano em que a presença portuguesa nas secções competitivas da Berlinale é mais discreta, e depois de uma participação recorde em Roterdão (11 filmes) ainda há menos de um mês. Enquanto em 2017 Cidade Pequena era uma de quatro curtas a concurso, com Colo de Teresa Villaverde na selecção oficial de longas, este ano Portugal será representado em competição apenas pelas três curtas. O único nome “estreante” entre o lote, o açoriano David Pinheiro Vicente, confessa ao PÚBLICO ainda não ter “ultrapassado o choque, o espanto de ter conseguido entrar” na selecção competitiva — Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude) (primeira projecção domingo, 18, às 21h30) é, para todos os efeitos, um “filme de escola” realizado no âmbito do seu curso na Escola Superior de Teatro e Cinema.

Já os seus colegas de selecção têm outra experiência: João Salaviza foi o primeiro vencedor português do Urso de Ouro das curtas, e Russa, co-dirigida com o brasileiro Ricardo Alves Jr. e realizada a convite da Câmara Municipal do Porto, é a sua terceira presença na Berlinale Shorts (primeira projecção sexta-feira, dia 16, às 21h30). Quanto a João Viana, que assistiu Paulo Rocha ou Manoel de Oliveira, repete em 2018 a “dobradinha” que conseguiu em 2013, ano em que levou à capital alemã a longa A Batalha de Tabatô (que recebeu uma menção especial atribuída pelo júri da primeira obra) e a curta Tabatô. Também este ano Viana viu seleccionada uma curta e uma longa gémeas: Madness, a curta que está na Berlinale Shorts (primeira projecção sexta-feira, dia 16, às 16h), e a longa Our Madness, que tem estreia no Forum (primeira projecção no sábado, dia 17, às 19h).

É, aliás, no Forum, secção não-competitiva destinada ao cinema de autor e de vanguarda, que em anos anteriores acolheu Salomé Lamas, Filipa César ou Hugo Vieira da Silva, que se concentram este ano as longas de produção portuguesa. A Our Madness, segunda longa-metragem de João Viana, rodada a Moçambique com Sabine Lancelin (directora de fotografia que trabalhou com Oliveira e Chantal Akerman), juntam-se Drvo (A Árvore), terceira longa de André Gil Mata (primeira projecção quarta-feira, dia 21, às 21h30), e Mariphasa, segunda longa do veterano das curtas, Sandro Aguilar (primeira projecção segunda-feira, dia 19, às 20h). Para lá do Forum, João Pedro Rodrigues, o multipremiado realizador de O Fantasma e O Ornitólogo, fará parte de uma mesa-redonda integrada no Berlinale Talents, programa de networking e ateliers para novos talentos este ano subordinado ao tema “Segredos”, e que tem como um dos delegados o realizador André Santos. No júri de Documentário, que se reúne este ano pela segunda vez, estará Cíntia Gil, directora do Doclisboa, e Diogo Costa Amarante está no júri das curtas-metragens.

Cinema diverso

É legítimo, por isso, pensar que a variedade desta presença corresponde a um reconhecimento internacional da maneira como se faz e se pensa cinema em Portugal, do talento que por aqui se vai formando contra ventos e marés. Sandro Aguilar (n. 1973), em conversa com o PÚBLICO, resume desta maneira esse “apoio” (que se estende a festivais como Cannes, Locarno, Roterdão ou Veneza): “Temos uma taxa enorme de sucesso para os filmes que fazemos, e os festivais têm sido simpáticos para nós.” Aguilar fala com conhecimento de causa — é um dos responsáveis do Som e a Fúria, a produtora de Miguel Gomes, Ivo Ferreira ou Salomé Lamas — e é também por isso que sublinha os riscos e os limites de meter tudo num mesmo saco. “Os festivais são diferentes uns dos outros,” aponta, “e os filmes têm histórias e percursos muito diferentes, com pressupostos muito diferentes, vistos em contextos muitos diferentes. Cada caso é um caso”.

Isso é visível na própria maneira como cada um destes cinco realizadores chega a Berlim com filmes de origens muito diferentes. David Pinheiro Vicente (n. 1997) aparece com uma curta de 20 minutos feita em ambiente de escola com uma equipa e elenco de colegas — gente que se questiona todos os dias se é realmente possível fazer carreira no cinema em Portugal. Que Onde o Verão Vai tenha sido seleccionado por Berlim, diz o jovem realizador, “deu-me alguma confiança de poder vir mesmo a enveredar pelo cinema. E deu-me força para pensar que, sem deixar de ser um filme de escola, ele possa ser visto apenas como um filme”.

Do Aleixo a Sarajevo

Russa surgiu de um convite do projecto Cultura em Expansão da Câmara Municipal do Porto, que João Salaviza (n. 1974) e o brasileiro Ricardo Alves Jr. (n. 1982) concretizaram com uma residência de três meses no Bairro do Aleixo. Nas palavras de Salaviza ao PÚBLICO em Dezembro último, quando o filme foi apresentado no Porto, “quisemos ir conhecer o bairro por dentro, e percebemos que a realidade era muito diferente do mito que se tinha criado sobre o Aleixo”. A curta de 20 minutos é “um encontro com os moradores do bairro — pessoas reais e não personagens”.

Para André Gil Mata (n. 1978), Drvo — produção 100% portuguesa rodada inteiramente na Bósnia — é um projecto que data dos seus estudos na Film Factory, a escola de cinema que Béla Tarr dirigiu em Sarajevo entre 2011 e 2015. Dessa estadia já nascera a sua longa anterior, Como me Apaixonei por Eva Ras, rodada na capital bósnia com uma equipa reduzida ao mínimo; o novo filme, uma ficção oblíqua assombrada pela guerra dos Balcãs, “nasceu intuitivamente da minha experiência em Sarajevo e da solidão que sentia nas pessoas que fui conhecendo. A guerra está ainda muito presente e não há forma de lhe escapar. É uma história que fui desenvolvendo e escrevendo ao longo do tempo em que lá estive, mas que levou mais tempo a montar por exigir outros meios de produção”.

João Viana (n. 1966), por seu lado, “viajou” ao longo dos últimos anos com o projecto de Our Madness por ateliers de desenvolvimento de festivais como Veneza e Cannes, e deles trouxe o que diz ser como “uma preparação” que compara à de atletas de alta competição. “Num atelier como a Cinéfondation de Cannes é o mercado que vem ter connosco, e temos de ter capacidade de convencer em muito pouco tempo os financiadores que temos uma boa história para contar. É algo que ginastica a nossa capacidade de síntese, e quando chegámos à rodagem estávamos preparados, sabíamos exactamente o que queríamos fazer.”

Um convite ao espectador

Madness e Our Madness (co-produções Portugal-França com participação guineense, moçambicana e do Doha Film Institute) exploram a ténue linha entre a lucidez e a loucura através da história de uma mulher que foge de um hospital psiquiátrico em busca do filho: “A loucura tem sempre a ver com o trauma, que etimologicamente significa traído pelos nossos. Antes disso, estávamos lúcidos. A curta vê a loucura de fora; na longa vemos a loucura de dentro, através de alguém que os outros consideram louco.”

Em comum, Drvo e Our Madness têm influências do cinema mudo: são filmes propulsionados menos pelo diálogo ou pela narrativa do que pela imagem (e também pelo trabalho de som). A referência é reivindicada tanto por João Viana — cujo primeiro “embate” com o cinema, ainda jovem, se fez através do burlesco de Chaplin ou de Laurel & Hardy — como por André Gil Mata, que confirma a influência do mudo na própria abordagem visual do filme, rodando quase só em exteriores mas “fazendo deles estúdios onde pudéssemos estar com a natureza sem ser vencidos por ela”.

É também nessa lógica de exploração audiovisual que se inscreve Mariphasa, nocturno atmosférico acompanhando uma mão-cheia de personagens em busca de uma qualquer redenção, onde Sandro Aguilar prossegue o seu trabalho de exploração abstracta da narrativa. “A minha forma de olhar para o cinema está mais próxima da música ou da poesia,” explica o realizador. “O funcionamento dos meus filmes está mais próximo de um imaginário inconsciente. Mas este é de facto um filme mais acessível, até porque tem uma unidade de espaço, de tempo, uma série de coisas que nos tranquilizam enquanto espectadores.” 

E é por aí — pelos espectadores — que chegamos a uma das razões para o apelo internacional do cinema português, que Aguilar define como norte do seu cinema, mas que seria perfeitamente aplicável aos outros filmes presentes em Berlim e noutros certames: “Enquanto espectador, gosto de ser tratado com respeito, de ter espaço no interior do filme para o poder habitar; não gosto do que me é dito e do que me é explicado, gosto de estar em estado constante de adivinhação.”

É esse convite ao espectador para fazer o seu próprio filme perante aquilo que está no ecrã que propulsiona o cinema português para os festivais. Quem sabe se não é por aí que se confirma outro Urso de Ouro para as curtas este ano? A ver vamos, ao longo dos próximos dez dias.

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