Democracia europeia: cheirar mas não inalar

o que Paulo Rangel conseguiu foi que não houvesse lista pan-europeia e que Portugal, ao contrário de muitos outros países, ganhasse zero eurodeputados.

Paulo Rangel, Nuno Melo, Francisco Louçã: a mesma luta. E a mesma gloriosa vitória: impedir que os cidadãos europeus possam ter mais um boletim de voto nas eleições europeias e assim eleger, além dos seus eurodeputados nacionais, uma trintena de deputados em listas pan-europeias que nos permitiriam também escolher democraticamente um programa para a Comissão Europeia e as pessoas para o implementar.

É uma aliança — entre os euro-instalados e os eurocéticos — que só é estranha se estivermos distraídos. Aliás, é uma aliança que se repete em cada país — e no Parlamento Europeu, onde a reforma foi derrotada pelo mais poderoso partido europeu, o PPE, em conjunto com a extrema-direita e a esquerda nacionalista. Excluindo posições como a do PCP (que se afirma simplesmente contrário ao projeto da União Europeia) poderíamos imaginar que para as outras tribos políticas o ponto de união estivesse em achar que, já que a UE existe, o importante é fazer com que ela seja mais democrática. E isso, em abstrato, é o que eles nos dizem. Na prática, contudo, unem-se para identificar (e sempre que possível, exagerar) os defeitos de toda e qualquer proposta para democratizar a UE. Isto corresponde a uma convergência política objetiva: para os euro-instalados, a UE está bem assim; para os eurocéticos, a UE está bem sempre que estiver mal. Se se começa a falar de democracia europeia, logo começam os problemas, reais ou inventados.

Em primeiro lugar, que as listas pan-europeias eram más porque Portugal pode perder eurodeputados! Na verdade, o espaço para as listas pan-europeias teria sido criado a partir de apenas uma parcela dos 73 lugares deixados vagos pelos deputados britânicos. O resto seria para distribuir pelos outros países da UE. Assim, o que Paulo Rangel conseguiu foi que não houvesse lista pan-europeia e que Portugal, ao contrário de muitos outros países, ganhasse zero eurodeputados.

Segundo problema: as listas pan-europeias vão criar deputados de primeira e de segunda! Façamos o seguinte exercício: os Açores já têm deputados eleitos por cada ilha e deputados eleitos por um círculo comum a todo o arquipélago. Alguém alguma vez ouviu dizer que nos Açores há deputados de primeira e deputados de segunda? Na Alemanha acontece o mesmo: já alguém ouviu dizer que há deputados alemães de primeira e de segunda?

Terceiro problema: às listas pan-europeias iriam parar só candidatos de países maiores! Bem, depende de como fosse a legislação que as regulasse. Nas emendas que a aliança entre euro-instalados e euro-céticos conseguiu obstruir havia propostas para não haver candidatos dos mesmos países entre pelo menos cada cinco lugares nas listas eleitorais. Deveríamos ir mais longe, propondo que cada lista pan-europeia tivesse só um candidato ou candidata por país — e que estes fossem os nomes propostos para os lugares de comissários europeus, que são um para cada país. Assim, conseguiríamos num só passo democratizar a eleição do presidente da comissão, tornar mais transparente a seleção dos comissários e garantir a igualdade estrita entre estados-membros. Quem tanto se anunciava preocupado com este último tema não se preocupou em apresentar propostas que resolveriam a sua preocupação.

As listas pan-europeias poderiam ser bem ou mal implementadas. O que se viu na oposição nacional às listas pan-europeias não foi, porém, vontade de melhorar a proposta (após o que seria legítimo chumbá-la se ela continuasse a não responder às dúvidas e receios legítimos). Foi apenas a necessidade de manter o monopólio da representação nos partidos nacionais e continuar a esconder que lá em Bruxelas o verdadeiro poder de decisão sobre lugares, programas e políticas está em partidos cujos nomes, siglas e símbolos que a maior parte dos europeus não conhece e jamais alguém teve oportunidade de ver num boletim de voto.

Assim Paulo Rangel e Nuno Melo conseguirão evitar que se perceba que votar no partido europeu do PSD e do CDS é a mesma coisa que votar no partido europeu de Viktor Orbán. E Francisco Louçã continuará com a sua Comissão Europeia favorita, que é a escolhida à porta fechada e logo mais facilmente sujeita à crítica da falta de democracia. Para ambos os lados, a exigência de democracia na UE não é mais do que um cheirinho para enfeitar os discursos. É um pouco como o manjerico. Para cheirar sem respirar.

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