Nem tudo é pacífico no balneário da equipa que se uniu em nome da paz

A equipa feminina de hóquei da Coreia unificada personifica as tensões do difícil processo diplomático que se espera vir a iniciar-se em Pyeongchang. Sul-coreanos estão divididos entre o apoio e a crítica.

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A equipa de hóquei feminino da Coreia jogou pela primeira vez no domingo, num amigável contra a Suécia EPA/Woohae Cho / POOL

Jogava-se uma simples partida de preparação de hóquei no gelo naquele domingo, mas milhares de pessoas fizeram questão de se dirigir ao Pavilhão Internacional Seonhak, em Incheon (Noroeste), para assistir ao primeiro jogo da equipa unificada da Coreia. A tarde acabou em derrota contra a Suécia, mas o momento não deixou ninguém indiferente. O simbolismo falou mais alto do que o resultado.

As jogadoras vestiram equipamentos com uma imagem da península unida e emocionaram-se enquanto ouviam os adeptos cantarem o Arirang — a canção tradicional que funciona como uma espécie de hino não-oficial das duas Coreias e que se celebrizou durante a ocupação japonesa na primeira metade do século XX. Num capricho do destino, a equipa coreana vai defrontar precisamente o Japão durante os Jogos Olímpicos.

Durante o jogo, os adeptos lançaram cânticos de “somos um só” e aplaudiram qualquer demonstração de esforço das suas jogadoras, independentemente da origem. Mas a harmonia em torno da equipa de hóquei está longe de ser o sentimento consensual entre os sul-coreanos, como o prova um grupo de pessoas que, à mesma hora, protestavam à porta do pavilhão contra as “Olimpíadas de Pyongyang”.

As objecções à participação da equipa conjunta começam logo no plano desportivo. O critério para a escolha do hóquei no gelo feminino parece estar relacionado com a proximidade competitiva entre as duas Coreias (o Sul e o Norte estão em 22.º e 25.º lugar no ranking mundial), mas persiste um sentimento de alguma injustiça. O primeiro-ministro sul-coreano, Lee Nak-yeon, chegou mesmo a dizer que a modalidade já estaria “fora do alcance das medalhas” de qualquer forma, e por isso justificar-se-ia o seu “sacrifício” em nome da diplomacia. Lee acabou por se desculpar, mas a polémica já estava instalada.

A analista do Instituto EUA-Coreia da Escola Avançada de Estudos Internacionais Johns Hopkins, Jenny Town, diz ao PÚBLICO que a “gestão da questão da equipa de hóquei foi muito mal feita”. “É o tipo de coisas que fere o orgulho nacional.”

Esta não vai ser a primeira experiência de equipas conjuntas inter-coreanas em competições internacionais. No Campeonato Mundial de Juniores da FIFA, organizado em Portugal em 1991, as duas Coreias fizeram alinhar uma equipa conjunta de futebol (caíram nos quartos-de-final contra o Brasil) e, meses antes, tinham participado nos mundiais de ténis-de-mesa, no Japão. Por esta altura, as relações entre os dois países atravessavam uma época de negociações intensas que tinham como pano de fundo um desanuviamento da tensão por causa do fim da Guerra Fria e da consolidação democrática na Coreia do Sul.

A escolha do hóquei feminino também levanta algumas questões de discriminação de género. “Há uma certa noção de que os desportos femininos não são tão importantes e que podem simplesmente ser usados nesta abordagem cultural ligeira”, diz ao New York Times o doutorando em História da Coreia na Universidade George Washington, Benjamin Young.

A própria construção da equipa não ficou isenta de polémicas. O Comité Olímpico Internacional abriu uma excepção ao regulamento e permitiu a inscrição de 12 jogadoras norte-coreanas, que se juntam às 23 que compõem o plantel sul-coreano. Mas para cada jogo apenas podem ser convocadas 22 jogadoras e pelo menos três terão de ser obrigatoriamente norte-coreanas.

A inclusão das jogadoras norte-coreanas foi recebida de forma pouco entusiasmada pela treinadora da equipa sul-coreana, a norte-americana Sarah Murray. Apesar de a possibilidade de uma equipa conjunta ter sido uma hipótese explorada nos meses anteriores, Murray disse que a confirmação foi “repentina” e manifestou receio pelo impacto “perigoso” para a química da equipa.

Shin So-jung, uma das jogadoras sul-coreanas, disse ao jornal Chosun Ilbo que ficou “devastada” quando soube da integração de atletas com quem nunca jogou na sua equipa e que iriam obrigar à exclusão de companheiras sul-coreanas. “Todas nós tivemos que abdicar de alguma coisa nas nossas vidas, mas estivemos concentradas num único objectivo: jogar nos Jogos Olímpicos”, afirmou.

“Há uma noção de que a Coreia do Norte participa nos Jogos às custas da presença de atletas sul-coreanos”, diz Jenny Town. Este sentimento encontra eco em grande parte da sociedade sul-coreana, sobretudo entre as gerações mais novas, cujos sentimentos pró-unificação são menos evidentes. Entre estes, as memórias da Coreia pré-guerra não existem e poucos têm familiares imediatos do outro lado do Paralelo 38. Não conheceram outra realidade que não a de uma península partilhada por países completamente diferentes.

Para além disso, há mudanças em curso no seio da própria sociedade sul-coreana. Apesar de a competitividade ser uma característica omnipresente para os sul-coreanos — começando logo nas escolas frequentadas pelas crianças —, os laços pessoais e familiares sempre foram mais determinantes para a ascensão social ou profissional. A Coreia do Sul é o país onde, por exemplo, os grandes conglomerados multinacionais, como a Samsung ou a Hyundai, continuam a ser liderados por dinastias familiares.

Mas a tolerância ao nepotismo que domina a distribuição do poder no país está a esgotar rapidamente. A prova maior foi o processo que culminou com a destituição da ex-Presidente Park Geun-hye, no ano passado, acusada de ter intercedido em favor de uma amiga pessoal junto dos principais empresários sul-coreanos. Durante meses, manifestações de milhões de pessoas nas ruas de Seul exigiram a demissão de Park e o fim da cultura de favorecimentos pessoais.

Os jovens foram a força motriz deste movimento e, ironicamente, também foram os principais apoiantes da eleição de Moon Jae-in, em Maio, que prometeu combater os vícios do mundo político e empresarial. Agora, muitos parecem ver Moon a recuar, perante o imperativo diplomático — no último mês, a popularidade do Presidente caiu dos 73 para os 60%. “Esta geração dá muito mais valor à equidade e ao respeito pelas regras e normas”, diz ao Financial Times Duyeon Kim, do Fórum para o Futuro da Península Coreana. 

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