As listas transnacionais como via para um novo espaço público europeu

A Europa precisa de um espaço público próprio e autónomo, sob pena de ser confiscada por elites insuficientemente escrutinadas.

1. Os detractores do projecto europeu, tal como ele se tem vindo a configurar historicamente, invocam habitualmente como argumento preliminar a constatação da inexistência de um povo europeu. Esta tese, de origem profundamente conservadora, valoriza um entendimento estático da realidade e desqualifica qualquer tipo de pretensão voluntarista na actividade política. Curiosamente, é em simultâneo reclamada por significativos sectores quer da esquerda quer da direita do espectro ideológico europeu. Estaríamos assim condenados a permanecer eternamente prisioneiros de uma representação da soberania política e do quadro de disputa democrática associados ao modelo do Estado-nação, como se este também não fosse o resultado de uma construção histórica. Assiste, contudo, alguma validade à teoria da inexistência de um demos europeu, o que não confere necessariamente razão aos que se louvam da mesma para contestar qualquer avanço no sentido de um progressivo alargamento da dimensão supranacional no âmbito da União Europeia. Como a história nos ensina, os espaços públicos não surgem por pura geração espontânea; antes exigem a adopção de medidas politicamente orientadas para a sua promoção. Isso aconteceu em todos os espaços públicos nacionais.

Ontem mesmo, o Parlamento Europeu, a propósito de uma discussão sobre a sua própria composição, acabou por se pronunciar sobre o tema da criação das chamadas listas transnacionais. Tendo-se forjado desde o início um amplo consenso em torno da proposta apresentada sobre a composição do Parlamento na próxima legislatura, quase toda a discussão se concentrou na temática das listas transnacionais, a qual se revelou deveras fracturante. O tema é polémico, suscita dúvidas e é possível enunciar razoáveis argumentos a favor e contra as mesmas. Um decisor político não pode, porém, permanecer numa espécie de limbo aporético, furtando-se ao dever de exprimir uma posição própria, por mais incómodo que seja o esforço a levar a cabo, entre a dúvida que a inteligência aprofunda e a enunciação da vontade que a responsabilidade pública impõe.

Nos últimos dias ouvimos e lemos vários argumentos a favor e contra a criação do famigerado círculo transnacional. Eximir-me-ei a recenseá-los, de tal modo são já conhecidos. Ponderadas as vantagens e as desvantagens, considero que a criação de um círculo desta natureza serviria o propósito de consolidação de um espaço público europeu distinto do somatório dos espaços públicos nacionais. A introdução do duplo voto, num caso numa lista nacional, noutro caso numa lista europeia, favoreceria a compreensão da especificidade de um novo nível de confronto e decisão no plano político, com o que se obteriam significativos proveitos no que diz respeito à qualidade da discussão democrática.

A singularidade do projecto europeu aponta para soluções originais e, como tal, insusceptíveis de serem recolhidas através da simples adução de experiências históricas anteriores. Nenhum dos argumentos apresentados contra a existência das listas transnacionais me pareceu ter a força e a potência da razão acima enunciada. A Europa precisa de um espaço público próprio e autónomo, sob pena de ser confiscada por algumas elites políticas, económicas e culturais insuficientemente escrutinadas e imbuídas de uma vontade orientadora alicerçada ora numa racionalidade tecnocrática, ora num vanguardismo ideológico. Por isso mesmo, ao contribuírem para a afirmação desse espaço público europeu, as listas transnacionais contribuiriam para o fortalecimento da democracia, a ampliação da capacidade de escrutínio público e a clarificação do próprio debate político. Perante isto, o recurso a argumentos de carácter puramente nacionalista, quando nem sequer estava em causa a possibilidade de qualquer país perder o número de deputados de que actualmente dispõe, parece-me completamente despropositado. Tenho igualmente por pouco escrupuloso o argumento da proximidade, uma vez que esta já se não coloca nos termos espaciais convencionais, em virtude dos novos recursos tecnológicos amplamente disponíveis. Quem está mais próximo do eleitor: alguns ignotos candidatos nacionais ou uma grande figura da vida política europeia reconhecida pelo seu percurso, pela sua personalidade e pelas posições públicas de que se reclama?

O Parlamento Europeu votou ontem de forma clara contra a possibilidade da criação de listas transnacionais. O assunto está encerrado. Perdeu-se assim, a meu ver, uma boa ocasião para dar um passo importante no sentido da melhoria do modelo institucional europeu. Continuaremos a ter eleições europeias quase exclusivamente dominadas pela discussão das questões nacionais. Estas são importantes, e também têm obviamente um importantíssimo lugar no debate europeu; não deveriam era ter o monopólio da discussão, como até aqui praticamente têm tido nas eleições para o Parlamento Europeu.

2. O Governo manifestou a intenção de nomear António Sampaio da Nóvoa como embaixador de Portugal junto da UNESCO. Dificilmente se poderia conceber melhor opção. Sampaio da Nóvoa dispõe de todos os atributos necessários para o cabal desempenho daquela função. Estranhamente, a Associação de Diplomatas apressou-se a protestar, numa ridícula manifestação de corporativismo paroquial. Ainda há muito atavismo no nosso país. António Sampaio da Nóvoa vai desempenhar com inteligência e brilho a função que o Governo agora lhe comete. Augusto Santos Silva deu provas de não estar prisioneiro do aparelho diplomático. Ora, isso é algo que merece ser devidamente saudado.

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