Um cineasta e o seus “buracos negros”

O gosto de Jorge Cramez por filmar a música, a dança, os corpos e os rostos tomados por uma espécie de suspensão. Casar, não casar, ficar com este, ficar com aquela, Amor Amor.

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Miguel Manso

Foi há onze anos que se estreou Capacete Dourado, a bela primeira longa-metragem de Jorge Cramez, que retomava um tema clássico, do cinema e não só: a força da paixão adolescente, a rebelião de um amour fou contra todas as circunstâncias. Onze anos passados, Cramez dá finalmente sequência a esse filme, com um título que vai directamente ao assunto central – Amor Amor – e que “mascara” a peça de Corneille (Place Royale) que o argumento muito livremente adapta. Não nos parece tão conseguido quanto o filme de estreia, não lhe encontramos a mesma força. Mas apesar de todos os contrastes, ou por causa deles, o “emparelhamento” dos dois, como um “lado A” e um “lado B”, é uma ideia que ocorre. Às paisagens transmontanas de Capacete Dourado sucede-se uma Lisboa (e imediações) inapelavelmente urbana, muito nocturna, contemporânea ma non troppo; e as personagens “amaldiçoadas” do primeiro filme dão lugar a um conjunto aparentemente livre desse tipo de constrangimentos, excepto aqueles – os medos, as dúvidas – que existem dentro das suas próprias cabeças: casar, não casar, ficar com este, ficar com aquela. Um novelo de amores e relações cruzadas, liderado pelas personagens de duas mulheres (Ana Moreira e Margarida Vila-Nova) e dois homens (Jaime Freitas e Nuno Casanovas), e muito “burguês” na acepção – chamemos-lhe, “rohmeriana” - do termo. Esse, Rohmer, é um nome que o próprio Jorge Cramez profere, naturalmente, na conversa que tivemos com ele.

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Um novelo de amores liderado por duas mulheres (Ana Moreira e Margarida Vila-Nova) e dois homens (Jaime Freitas e Nuno Casanovas), e muito “burguês” na acepção “rohmeriana” do termo
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“É possível fazer filmes sem dinheiro, como fui fazendo alguns para aqui e para ali ao longo destes anos”, diz, justificando o porquê do lapso de onze anos entre a primeira longa e a sua sequência. “Mas depois há a vida, não é? Tenho a minha casa, tenho que comer… e este filme não podia ser feito sem dinheiro, por questões de planificação de produção, porque é preciso pagar às pessoas, etc”. Por essa razão preferiu esperar o tempo que fosse preciso até que o projecto fosse merecedor de um subsídio do ICA: “Nos anos 2000 concorri ao mesmo tempo com o Capacete e com este, e quando me disseram que tinha ganho o meu primeiro pensamento, ou desejo, foi que tivesse sido com este”. O projecto ainda andou mais uma dezena de anos a ser submetido aos concursos – e “a receber pontuações completamente díspares de ano para ano” – até finalmente “entrar”. Mas a origem é ainda mais remota do que a de Capacete Dourado": "vem para aí de 1992!”. Foi nessa época, princípios da década de 90, que tomou contacto com a peça de Corneille, a partir de uma representação na Cornucópia, por uma companhia francesa, num ciclo de convites a grupos de teatro estrangeiros. “Eu não conhecia a peça, nem tão pouco o Corneille, mas estava a ver aquilo e estava-me a ver a mim e aos meus amigos da altura: é impressionante como a peça tem 400 anos mas as grandes questões, sobre o amor, sobre o casamento, sobre o medo disto tudo, são exactamente as mesmas, e nessa angústia revi imediamente o meio em que eu vivia”

Pensando noutros filmes de Cramez, as curtas com que se iniciou, uma delas (a primeira, Erros Meus, que trabalhava sobre Camões) punha já a questão dos textos clássicos, e da sua transposição para uma espécie de vida vivida. Mas “não é necessariamente um interesse especial” por uma relação entre “textos” e “vida”: “eu vou lendo e vou lendo… e aquilo depois tem que ver comigo ou não. Por acaso estou a dizer isto e neste momento estou a trabalhar o Chekhov, o Platonov, e retrospectivamente a encontrar algumas relações com este filme: a personagem do Jorge (Jaime Freitas) pode muito bem vir a ser um Platonov no futuro, prematuramente acabado e deprimido depois de ter sido um homem elegantíssimo e promissor”. Ainda um exemplo dessa relação pessoal com o que filma é o ambiente, as várias cenas em bares e discotecas: “Agora há muita gente que me fala no Verão Danado [filme de Pedro Cabeleira] por causa dessa cenas, mas isto, as boîtes, os afters, tem tudo a ver com a minha vida”. É incapaz de filmar algo com que não tenha uma ligação directa, e embora se passe de Trás os Montes a Lisboa entre Capacete e Amor Amor a ligação mantém-se: “Conhecia todos os espaços do Capacete, até aos anos 90, enquanto a minha avó foi viva, a minha vida fazia-se entre Lisboa e Vila Real, ia lá nas férias, passava lá os verões…”

Há qualquer coisa de indefinido na Lisboa filmada em Amor Amor. É reconhecivelmente contemporânea sem que os sinais da “contemporaneidade” sejam carregados. Pelo contrário, nalguns apontamentos são até dispersos, como que diluídos num tempo imaginário a unir o presente e o passado dos anos 90. “Adoraria ter tido dinheiro para reconstituir a Lisboa dos anos 90 porque na minha cabeça esta história passa-se entre o final dos anos 80 e o princípi dos anos 90”. Volta ao contacto inicial com a peça de Corneille: “Eu reconheci, em cada uma daquelas personagens, um amigo meu”. A relação com o texto, e com o argumento do filme, ficou definitivamente marcada pelo tempo em que o descobriu. Conta que, durante os anos em que andou a submeter o projecto a concurso, chegou a reescrever o argumento para “actualizar” a idade das personagens – numa das versões “o Jorge já tinha 50 anos, a idade que eu tinha na altura”. Mas voltou atrás, porque já não fazia sentido: “aos 50 anos já ninguém está angustiado perante a ideia de se casar ou de não se casar”. Mas diz, e ainda sobre a questão da época, que mesmo sem “reconstituir”, as referências têm uma certa potência: “toda a gente me fala do Kirk [nota: o Captain Kirk foi um bar do Bairro Alto muito em voga em meados dos anos 90 mas que fechou relativamente depressa], isso abre logo alguma coisa nas pessoas de uma certa geração”.

Por falar em gerações, e até porque as diferenças de idades são uma questão na narrativa do filme, há em Amor Amor alguma vontade encenar, não necessariamente um “conflito”, mas um olhar de uma geração sobre outra? “Talvez, desde que isso não implique um juízo de valor”, diz Cramez. “Eu dou-me naturalmente com gente muito mais nova do que eu, são essas pessoas que estão nos sítios em que eu estou… até aqui na Cinemateca [onde decorreu a conversa], quando cá venho são poucas as pessoas da minha idade”. Não é uma escolha, portanto, e “sobretudo  não implica nenhum julgamento nem aquelas coisas típicas de pessoas mais velhas: conheço muita gente que tem menos trinta anos do que eu e são mais cultos do que eu era na idade deles, e outros que não”.

A acção de Amor Amor passa-se num período temporal reduzido, não mais de 24 horas numa véspera de ano novo. Pormenor que volta a lembrar uma curta de Cramez, Venus Velvet, que reunia um grupo de personagens  num bar perante a ameaça de um iminente fim do mundo. “Há uma certa expansão dessa ideia, sim”, mas reduzindo a urgência porque aqui não há nenhuma catástrofe à vista. Há é a questão do tempo, da marcação do tempo, como factor de angústia face ao que o realizador chama “a possibilidade do amor”. E há um fenómeno raro: a neve, uma neve de efeito especial que cai sobre Lisboa na derradeira cena e nos derradeiros planos. “Acho que isso vem do Raio Verde do Rohmer, aquele fenómeno atmosférico de que é fácil não nos darmos conta e que no filme do Rohmer é como que uma metáfora do enamoramento – naquele campo/contracampo do final do Raio Verde, de repente aquela mulher, que podia ser a criatura mais chata do planeta, é linda aos olhos do homem”. Mas a neve também é uma maneira de suavizar o dramatismo do final original de Corneille, de criar uma tonalidade relativamente indefinida: “No texto do Corneille, por exemplo, a Lígia (Vila-Nova) entra para um convento, aqui prefiro deixá-la com um sorriso”. Algo semelhante à opção que já tinha tomado no Capacete, quando in extremis, já na montagem, decidiu “não matar” o casal protagonista, desenlace que estava previsto no argumento.

Outro aspecto relevante de Amor Amor é o gosto de Cramez por filmar a música, a dança, os corpos e sobretudo os rostos tomados por uma espécie de suspensão. Comentamos que dá a impressão de que é isso – rostos enlevados pela música – que mais gozo tem em filmar. “Talvez”, responde. “È aquilo a que um amigo meu, o Edmundo [Cordeiro, também co-argumentista do filme] chama os meus ‘buracos negros’. Já tinha usado isso no Capacete, por exemplo naquela cena com os Echo and the Bunnymen e as imagens desaceleradas da festa. Para mim são como momentos em que se entra na cabeça das personagens”. Ficou “radiante” por em Amor Amor se ter conseguido os direitos de Brel (Valse à Mille Temps, que está no filme para o rosto de Margarida Vila-Nova), e de um clássico dos anos 70 muito velvet goldmine, o Come Up And See Mee (Make Me Smile Again) dos Cockney Rebel de Steve Harley. Quando o filme acaba, num céu nocturno iluminado pelo fogo de artifício do réveillon, é essa canção que fica, e a sua mistura de melancolia e euforia transmite muito bem o clima de Amor Amor

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