António Lobo Antunes foi a Belém iniciar alunos no mistério da (sua) escrita

Encerrando o ciclo Escritores no Palácio de Belém, o autor que Marcelo Rebelo de Sousa apresentou como "um génio" falou da sua relação com os livros e das suas referências a uma plateia vinda dos Salesianos de Lisboa. E pesou as palavras para contar a história do avanço sexual que lhe fez um professor de Moral, quando estudava no Liceu Camões.

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Sebastião Almeida

"Quando eu nasci a morte não existia e toda a gente estava viva". Podia ser o início de um romance, mas foi o modo como António Lobo Antunes começou a narrativa da sua relação com a leitura, e logo a seguir com a escrita, quando o avô lia o jornal e ele, quatro, cinco anos, lhe perguntava o significado das cruzes em cima das fotos nas páginas de necrologia. Foi antes de a mãe lhe ensinar a ler e de associar cada letra a sinais que lhe revelavam o mundo onde passou a viver e do qual não saiu. Em Benfica, numa casa cheia de gente ("uma família tribal") ou na quinta da Beira Baixa com os seus ruídos misteriosos e a figura de D. João, o mendigo louco. "Tudo era magia. E eu perguntava-me: como é que eu mantenho esta magia para o resto da minha vida?"

Terá estado aí o princípio do escritor? António Lobo Antunes não desfez o mistério esta terça-feira, no Palácio de Belém, num encontro com os alunos dos 10.º e 11.º anos dos Salesianos de Lisboa que encerrou a iniciativa Escritores no Palácio de Belém. Antes o alimentou ao longo de uma hora, o tempo que demorou a conversa, em tom íntimo, quase confessional, citando Federico García Lorca (“só os mistérios nos fazem viver”) e a sensação quando o leu, de que aquele livro tinha sido escrito só para ele. Uma pausa: “Já vos aconteceu?”. E lembrou a sua interrogação pessoal, por essa altura, sobre o que seria a velhice, para concluir: a única maneira de ser velho é deixar de se espantar.   

O que se ouviu foi um homem a contar histórias com a ajuda de escritores que foram e continuam a ser uma referência para ele. Além de Lorca, “um grande poeta”, como o apresentou, houve Rilke, Dinis Machado, Mário Cesariny, Balzac (“um dos maiores talentos que já existiu”) e o inglês Evelyn Waugh, já no fim. “Não se esqueçam de mim… Numa entrevista, um jornalista perguntou-lhe [a Waugh] o que é que esperava das pessoas. Ele respondeu: ‘Espero que rezem pela minha alma de pecador.’ Portanto, àqueles que acreditam em Deus, só pedia que rezassem pela minha alma.” 

No início, pareceu quase tímido, cara fechada, depois ficou à vontade diante de uma plateia que estava conquistada à partida. Com o escritor uns minutos atrasado, o Presidente da República aproveitara para avisar que estava para chegar "um génio", um homem muito solitário, surdo, que raramente aceitava ir a sessões como aquela. Por isso, que aproveitassem para fazer perguntas e guardar aquele momento "com alguém que nem foi preciso ganhar o Nobel da Literatura para ser um Nobel da Literatura". Feitos os cumprimentos, Lobo Antunes sentou-se em silêncio, e o perfil correspondia ao da solidão antes anunciada por Marcelo Rebelo de Sousa. Sentado, sozinho, esperava. "Então?", quebrou o gelo. A pergunta saiu-lhe a frio; defronte das raparigas, em grande maioria, e dos rapazes que o olham curiosos, espera a deixa para começar. É o sorriso que então esboça que arranca da assistência a primeira pergunta, vinda de um aluno que está a ler Caminho Como Uma Casa em Chamas. “Quando estou a ler o livro preciso de me concentrar muito para não me perder. Aquilo tem todos os pensamentos de uma pessoa, e eu gosto disso. Às vezes não é confuso conseguir passar todos os pensamentos que lhe passam pela cabeça para o livro? Não lhe acontece às vezes baralhar-se consigo mesmo?”

É então que Lobo Antunes narra a história da primeira relação com as palavras, do primeiro romance que diz ter escrito aos cinco anos. “Uma página”, o percurso de mau aluno na escola, quando os irmãos tinham boas notas, a observação da mãe quando, ao ir falar com o professor, viu que ele era o único distraído, a olhar o recreio. “Os plátanos diziam-me mais do que os professores.” E fala de uma mistura de dimensões, realidade e ficção inseparáveis. As eternas perguntas, o que é realidade e o que é ficção, que se sintetizam numa só: “O que é a vida?” Não se alonga na oficina da escrita. Refere temas. O bem, o mal, a guerra. “Na guerra não há bons nem maus. Fui mau na guerra, e fui violento e fui brutal. Estava zangado com o mundo, mas estava sobretudo zangado comigo.” E o círculo fecha-se numa resposta longa em que deu a volta à vida. “O que me continua a seduzir é a quantidade de mistério à nossa volta. Tudo é mágico.”

O peso das palavras

Há mais perguntas. “Já escreveu sobre tudo o que quer?” Breve pausa. “Se calhar vou tentar fugir à pergunta…” O que quer dizer é: “Tudo isto para mim continua a ser um mistério indecifrável, por que é que escrevo esta palavra e não outra...” Conta que nos livros que escreveu não vê pessoas, mas vozes. “Para mim escrever é conversar com vozes.” Aprofundando a relação entre escrita e loucura, recorda a experiência como médico psiquiatra; depois, cruza o poder da linguagem com o da moral, lembra a aprendizagem de que o desejo carrega culpa, e a ideia de pecado. Silêncio. Calcula o peso do que vai dizer. É a história do avanço de um professor de Moral no Liceu Camões. “Às vezes convidava um de nós para se sentar ao lado dele ao pé do quadro. Uma vez chamou-me. Eu era loirinho, de olho azul…” Usava calções e conta que, por baixo da mesa, a mão do professor passeou pelos seus joelhos e subiu. Lobo Antunes parece perder-se nessa memória antecipando o efeito da confissão. “Uma vez, no fim da aula, chamou-me. Já tinha chamado vários colegas meus, eu nunca. Numa voz baixinha pergunta: ‘tens leite na pilinha?’”. Conta o espanto, a perturbação que não o deixava, e o modo como um dia ao jantar decidiu falar com o pai. Contou. “E o meu pai era um poço enorme de silêncio e eu cheio de cuidado para não cair lá dentro. O silêncio foi alastrando. Passou à minha mãe…". Sem dizer nada, o pai desapareceu. “Ouvimos o motor do carro no jardim e não ouvimos mais nada. O professor de Moral esteve dois meses sem ir dar aulas e quando voltou não ficou com a minha turma.”

As palavras têm um peso. Lobo Antunes já o referira. E sempre o mistério, a curiosidade, a tentativa de responder a perguntas, cada vez mais perguntas, que surgem enquanto a vida avança. "O extraordinário é a quantidade de coisas inesperadas que estão à nossa espera em cada esquina, em cada momento." Outra história, a de um escritor que se queixava a um outro escritor amigo: “Descobri que a minha mulher deixou de gostar de mim porque deixou de se ir despedir de mim à escada.” E o outro respondeu com outra pergunta: “Ou foste tu que te esqueceste de olhar para trás?” Olha a plateia como quem a interpela. “A maior parte das vezes não são as pessoas que se esquecem de se despedir de nós. Somos nós que nos esquecemos de olhar para trás.” 

António Lobo Antunes tem a atenção de todos ali. Perguntam-lhe sobre a maneira de escrever. “Não me peça conselhos.” Falha no trabalho árduo do escritor, garante que nenhum livro é bom à primeira, que a reescrita é uma necessidade: “Escrever é um ofício de paciência." E volta a lembrar escritores que conheceu. “Agora estou cheio de citações”, sorri, e olha à volta, antes de afirmar que a “competição entre artistas é muito intensa e muito brutal". Passaram uns 40 minutos. “Já estou farto de falar. Ainda falta muito?” Faltavam algumas perguntas. Volta então à vida e à morte, e arranca mais risos quando refere que “isto de estar vivo não acaba bem” – a propósito de Pôncio Pilatos, quando perguntou a Jesus o que é a verdade. E logo depois… “Como acho que sou livre, já chega…” 

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