Ex-consultor do governo britânico acusa alemães de terem as “mãos sujas de sangue”

Documentos citados na imprensa germânica atestam que VW, BMW e Daimler sabiam dos testes com macacos e humanos.

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Imagem de um protesto de 2017, na Alemanha, em frente ao ministério dos Transportes. No cartaz, em alemão, lê-se "As emissões diesel matam!" LUSA/CLEMENS BILAN

David King, consultor de topo para a Ciência do governo britânico até 2007, acusa os fabricantes de carros alemães de terem as "mãos sujas de sangue". Em declarações citadas nesta quarta-feira pelo diário inglês Daily Telegraph, de Londres, Sir David King afirma que é "simplesmente espantoso" que a Volkswagen (VW), a BMW e a Daimler (produtora dos Mercedes, entre outras marcas) tenham patrocinado, através de um instituto por eles criado e financiado, ensaios não escrutinados com macacos, atribuindo aos fabricantes em causa de terem provocado "a morte de um grande número de pessoas no Reino Unido" com os seus motores a gasóleo.

"O número de mortes prematuras devido ao monóxido e dióxido de Azoto no Reino Unido é de facto muito, muito grande e os governos em toda a Europa encorajam o diesel com base na ideia de que a tecbologia dos catalisadores funciona", sustenta aquele ex-responsável, rematando de forma contundente: "Estas empresas têm as mãos sujas de sangue – digo isto sem sombra de dúvida."

Tal como o PÚBLICO já noticiou, o monóxido e o dióxido de Azoto (NO e NO2, referidos muitas vezes de forma abreviada por NOx na literatura científica) causaram pelo menos 72 mil mortes prematuras na União Europeia, segundo um relatório analisado em 2017 pelo Parlamento Europeu.

Na sequência do afastamento de Thomas Steg, responsável da VW pelos pelouros das Relações Externas (incluindo governos) e da Sustentabilidade, David King evoca agora um episódio que viveu quando era o principal consultor do executivo inglês para a Ciência. Em 2004, segundo relata, participou numa visita a um laboratório britânico durante a qual diz ter sido "enganado para acreditar que a tecnologia usada com motores a gasóleo era segura". O objectivo de quem promoveu a visita seria o de "promover uma mudança de políticas em favor dos carros a diesel". Os testes em macacos e humanos não apresentaram relações conclusivas sobre o risco das emissões de motores a gasóleo e a saúde das cobaias. Para David King, os testes com macacos são "fraudulentos" e contribuem para o actual statu quo.

Os três fabricantes alemães apanhados no escândalo dos testes laboratoriais às emissões poluentes de motores a gasóleo com recurso a macacos pediram desculpa e as respectivas direcções garantem que não sabiam que estes ensaios tinham sido feitos. Porém, a verdade é que tinham de saber, sugerem documentos citados pela imprensa germânica, designadamente o Stuttgarter Zeitung – que noticiou no domingo que também houve ensaios com cobaias humanas. "Oficialmente, os fabricantes mostram-se consternados e distanciam-se dos testes. Mas os testes eram de facto conhecidos na Daimler, na VW e na BMW. Isso está indubitavelmente documentado", afirma aquele jornal de Estugarda, sede da Daimler.

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Vista exterior da Uniklinik de Aachen, ligada à universidade, onde foram feitos testes com humanos EPA/CARSTEN KOALL

"Os testes com macacos e seres humanos não poderiam ser do desconhecimento dos fabricantes", prossegue o jornal porque "ambos foram descritos num relatório de actividades" da entidade que levou a cabo esses testes em macacos nos EUA e com humanos na Alemanha, o EUGT. Este organismo foi fundado por aqueles três fabricantes alemães e pela Bosch, que no entando se afastou em 2013.

Além de a direcção do EUGT incluir representantes de todas essas empresas, o organismo em causa prestava contas da sua actividade. E os testes com macacos vinham expressamente referidos num capítulo dedicado aos "projectos em andamento", noticiou aquele diário alemão, a 29 de Janeiro, segunda-feira.

No mesmo texto recorda-se que o EUGT foi repetidamente acusado publicamente de trabalhar apenas para melhorar a imagem do motor a gasóleo. Os testes feitos a seu pedido nunca apresentaram relações conclusivas entre o consumo de NOx, os motores a gasóleo e problemas de saúde. A entidade acabaria por ser extinta em meados de 2017.

Diesel também mata em Portugal

A revelação dos testes com macacos partiu de afirmações feitas num processo em que a Volkswagen está a ser julgada nos EUA por causa da fraude que ficou conhecida como o Dieselgate – um problema mundial em que este fabricante (e outros) foram apanhados a reduzir de forma fraudulenta as emissões tóxicas em laboratório, apresentando aos mercados de consumidores níveis de poluição inferiores aos que realmente são produzidos por esses motores a gasóleo.

Diversos fabricantes foram apanhados a manipular os níveis de emissões. Em Maio de 2017, a revista Nature publicou um primeiro estudo sobre as consequências. Resultado: das 107.600 mortes prematuras atribuídas a emissões NOx em 2015, mais de 37 mil aconteceram por emissões que ultrapassaram os valores-limite estabelecidos nos regulamentos, como noticiou o PÚBLICO. E em Portugal? Como o PÚBLICO noticiou na mesma altura, calcula-se que houve 376 mil automóveis afectados pelo Dieselgate. O número de mortes directamente causadas por este caso não foi apurado país a país, mas uma estimativa da Agência Europeia do Ambiente, com dados de 2013, estima que em Portugal morrem todos os anos 6700 pessoas devido à má qualidade do ar e a três poluentes em particular. A maioria destas mortes (6070) devem-se às elevadas concentrações de partículas finas, seguindo-se o ozono (420 mortes anuais) e o dióxido de azoto (150 mortes por ano).  

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