“A adopção é para dar resposta às necessidades da criança e não a um desejo de parentalidade”

As crianças com consentimento dos pais biológicos para a adopção representam menos de 10%, diz a responsável do serviço de adopções da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Para 90%, a adoptabilidade é decretada por um juiz.

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Isabel Pastor dirige o serviço de adopções da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa desde 2016 Sebastião Almeida

Isabel Pastor dirige a Unidade de Adopção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) desde 2016, depois de ter chefiado o Sector da Adopção do Instituto da Segurança Social. Não comenta os casos revelados pela TVI de crianças adoptadas, cujo processo foi tratado pela SCML há 20 anos, e depois entregues a famílias no Brasil e Estados Unidos de bispos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Sobre isto, diz apenas que estão em avaliação “os procedimentos adoptados” na altura “à luz do enquadramento legal vigente na época”.

A TVI tem revelado denúncias de alegadas adopções ilegais em 1998 e 1999. Um dos alegados casos diz respeito a três crianças que terão sido entregues para adopção à secretária do líder da IURD, residente em Portugal, e depois levados por ela para serem adoptadas por bispos da igreja nos Estados Unidos e Brasil. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa abriu uma investigação à forma como foi feita a entrega destas crianças à secretária do bispo Edir Macedo, uma vez que técnicas da instituição terão estado associadas a este processo? 
A SCML tem vindo a efectuar, desde que foi alertada para esta questão através das reportagens da TVI, uma análise de todos os elementos de que dispõe sobre os casos referenciados e a avaliação dos procedimentos adoptados à luz do enquadramento legal e regulamentar vigente na época à qual se reportam os supostos factos [de há 20 anos]. Simultaneamente, e a par desta avaliação, a SCML manifestou desde logo a sua disponibilidade para colaborar com as investigações em curso por parte das entidades competentes, nomeadamente o Ministério Público.

A TVI alega que a candidatura dessa senhora foi aceite em poucos dias. É verdade? 
Nada poderemos dizer relativamente a casos concretos. Porém, e em termos gerais, pode referir-se que nunca poderá haver a confiança de uma qualquer criança com vista à sua adopção a uma candidatura ainda não estudada e seleccionada. Por outro lado, ocorre ainda distinguir a confiança a família seleccionada para adoptar, de outras medidas de colocação que à data eram reguladas pela Organização Tutelar de Menores, em que o tribunal, independentemente de qualquer processo de adopção, podia ‘decretar as medidas’ que entendesse ‘adequadas, designadamente confiar o menor a terceira pessoa ou colocá-lo em estabelecimento de educação ou assistência’. 

O consentimento dos pais biológicos para a adopção é obrigatório? 
É um requisito essencial para a adopção. As crianças só podem ser adoptadas se os pais consentirem na adopção ou se tiver sido aplicada uma medida de confiança à instituição com vista a futura adopção, que essa sim vai dispensar o consentimento dos pais.

Nesses casos, as adopções são decretadas por um juiz? 
No nosso sistema, existe a possibilidade de uma criança ser adoptada sem o consentimento dos pais se o tribunal entender que, por abandono, negligência, desinteresse, imaturidade ou incapacidade, aqueles pais não estão em condições de prover à vida e à educação dos filhos. Aplica então uma medida de adoptabilidade  sem consentimento. A partir desse momento, os pais ficam inibidos das responsabilidades parentais e cessam todos os contactos e visitas.

Quantas adopções, proporcionalmente, têm o consentimento dos pais e quantas são decretadas? 
Não temos esses dados separados. Mas os consentimentos são relativamente raros. São muito menores do que os números das crianças a quem o tribunal aplica compulsivamente [a medida de adoptabilidade]. As crianças que têm consentimento para a adopção não ultrapassam os 10%.

Em que circunstâncias é dado o consentimento? 
São, na maior parte, casos em que as autorizações são interiorizadas pela mãe ainda em fase de gravidez. Mulheres que no momento do parto, no hospital, nem sequer querem ver o filho e declaram logo a sua intenção de o encaminhar para a adopção. Este consentimento só é válido quando depois de seis semanas é prestado perante um juiz. 

Acontece haver reversão da decisão da mãe depois do parto? 
Normalmente, estas manifestações da mãe são confirmadas seis meses depois. São mães adolescentes, mães toxicodependentes, algumas situações em que a criança é fruto de uma violação. Em Portugal, é obrigatório que este consentimento seja declarado seis semanas depois do parto e perante um juiz, presencialmente. Raros são os casos em que os pais dão o consentimento muito tempo depois. Ocorre algumas vezes, quando o juiz, antes de aplicar a medida, tenta ouvir os pais, e com base nos relatórios, os confronta com as suas reais capacidades e vontade.

Os candidatos à adopção também são confrontados com as suas reais capacidades?
O que se pretende com a formação [tornada obrigatória há uns anos] é que as pessoas tenham noção do que são as crianças em situação de adoptabilidade e do que precisam. A adopção é para dar resposta a estas necessidades e não para corresponder a um desejo de parentalidade – que deve estar presente, é muito digno e necessário. Mas o principal objectivo é dar uma resposta a estas situações por vezes muito pesadas. As pessoas têm que saber exactamente aquilo com que vão ser confrontadas. E esse é o objectivo do plano de formação para a adopção. 

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