A entrevista do presidente do STJ e uma proposta em matéria de separação de processos-crime

Uma proposta que deixo para eventual debate, na certeza que o STJ está em muito boas mãos e que a quarta figura do Estado é, de facto, um jurista insigne e que está à altura do que dele se espera.

A entrevista concedida no domingo à TSF/DN pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Cons. Henriques Gaspar, que o PÚBLICO noticiou, revela que, enquanto cidadãos e juristas, podemos estar muito descansados quanto à capacidade e à clareza de ideias sobre a Justiça de quem dirige o tribunal cimeiro da hierarquia dos tribunais judiciais.

Este experiente magistrado sempre nos habituou a uma conduta discreta e eficaz, como se exige a quem ocupa o seu cargo. Dotado de enorme capacidade técnico-jurídica, sobretudo na área do Direito Penal, não fugiu às questões que lhe foram colocadas, mesmo as mais melindrosas. Registo a intransigente exigência da independência do poder judicial, o qual não pode estar ao serviço de uma qualquer raison d’État ou conveniências políticas, como sucede, de entre outros, no chamado “caso Manuel Vicente”. Por outro lado, sobre o segredo de justiça, não hesitou em (quase) classificá-lo como verdadeiro “segredo de polichinelo”, não adiantando mudar a regra para a vigente publicidade, mas sim garantir mecanismos expeditos para prevenir as fugas e investigar e punir quem as comete. E colocou o dedo na ferida: há jornalistas que, em certos tipos legais de crime em que o CPP admite a sua constituição como assistentes, fazem um uso abusivo desse direito, sem sancionamento penal, civil e deontológico visíveis. Mas também há mandatários judiciais que o fazem, magistrados e funcionários de justiça, pois, em temas como este, ninguém se acha ungido pela graça divina da libertação total do “pecado”. Dito de outro modo, Henriques Gaspar não sofre de “juizite aguda”, o que deve servir de exemplo para todos os magistrados judiciais.

Revelou igualmente coragem em defender o que, em traços gerais, também tive ocasião de escrever aqui no PÚBLICO sobre o chamado “caso Neto de Moura”: os acórdãos são, por definição, decisões colectivas que se não compadecem com uma “leitura na diagonal” ou mera aposição da assinatura do adjunto, e as decisões judiciais devem ser extirpadas de obiter dicta, comentários de índole pessoal que em nada contribuem para a sua fundamentação. “Uma sentença é um documento da República”, ressaltou, e bem, Henriques Gaspar, lembrando-nos a correcção dos tribunais germânicos em que todas as decisões começam por “em nome do Povo”. Importante ainda a referência às autoridades administrativas independente que actuam como reguladoras e supervisoras, em cuja área de intervenção contra-ordenacional se introduziram normas especiais face ao regime geral do ilícito de mera ordenação social que, amiúde, temos por mal fundamentadas do prisma da política legislativa e que lhes conferem, como sublinhado pelo entrevistado, competências materialmente penais. Por outras palavras: a actuação prática que os cidadãos sentem no dia-a-dia de muitos destes reguladores é demasiado tímida quando comparada com os poderes sancionatórios que a lei lhes atribui.

Uma última palavra para um pensamento de Henriques Gaspar com o qual não podia estar mais de acordo e que exprimi publicamente em conferência promovida pela PGR e de que o PÚBLICO deu nota: a separação de processos. Essencialmente relevante em fase de inquérito, sem prejuízo de uma casuística que só os magistrados do MP estão habilitados a fazer, entendo que seria útil uma alteração legislativa no sentido de a tornar mais fácil, sempre concatenada com a validade da prova. Por isso, sugeri, nesse colóquio, que o art. 30.º, n.º 1, al. a), do CPP, onde se lê “interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva”, devia também prever “ou nas hipóteses de criminalidade altamente organizada”, bem como, no art. 30.º, n.º 1, al. b), “a conexão puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado”, devendo a sua concretização ser apurada, aditando: “nomeadamente nas hipóteses previstas nas alíneas i) a m) do art. 1.º” (terrorismo, criminalidade violenta, especialmente violenta ou altamente organizada). Isto compaginado com o aditamento ao CPP de um art. 30.º-A (utilização da prova), em que se previsse algo como: “1 – Nos casos previstos no artigo anterior, os resultados probatórios obtidos no processo inicial que cumpram as disposições legais aplicáveis, são utilizáveis no novo processo, excepto se, em relação aos factos deste último, se não verificarem os requisitos de admissibilidade e validade dos meios de prova e dos meios de obtenção de prova em causa. 2 – A verificação dos requisitos a que se refere o número anterior são objecto de despacho da autoridade judiciária competente. 3 – Se o despacho for proferido em fase de inquérito, o arguido, o assistente e as partes civis podem requerer o seu controlo de legalidade pelo juiz de instrução criminal. 4 – Se o despacho a que alude o n.º 2 for proferido em fase de instrução ou julgamento, do mesmo cabe recurso para o tribunal hierarquicamente superior. 5 – O recurso a que se refere o número anterior sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 410.º a 425.º”.

Uma proposta que deixo para eventual debate, na certeza que o STJ está em muito boas mãos e que a quarta figura do Estado é, de facto, um jurista insigne e que está à altura do que dele se espera.

Sugerir correcção
Comentar