No Bairro da GNR, há quem recuse render-se ao aumento das rendas

Reformados da Guarda Nacional Republicana dizem não compreender o aumento da renda das casas onde moram há décadas e acusam a GNR de nunca ter feito qualquer obra no interior dos prédios. GNR diz que que se trata de uma actualização das rendas.

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Daniel Rocha
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Quando Manuel (nome fictício) foi morar para o Bairro da Guarda Nacional Republicana, na Ajuda, na década de 60, as rendas eram baratas. “Vim para aqui pagar 50 escudos. O meu vencimento era de 400”, recorda. Mais de 50 anos depois, o antigo cabo da GNR, de 89 anos, queixa-se de que a renda vai quadruplicar em apenas dois anos. “Eu pagava 70 euros. Sabe quanto vou pagar em 2020? 280. É uma brutalidade”.

Manuel ocupa uma das casas do Bairro General Afonso Botelho, que acabou por tomar o nome de Bairro da GNR, por se ter tornado uma pequena aldeia de homens que estiveram várias décadas ao serviço da GNR. Ali mora há 52 anos, sozinho, depois de ter ficado víúvo, numa das casas pintadas de branco com portões cinzentos, com vista para o Tejo, para a ponte, para o Cristo Rei.

O final do ano trouxe uma prenda amarga que chegou por carta a informá-los, a ele e aos colegas, que, já para Janeiro, a renda ia aumentar. Foram notificados pelos Serviços Sociais da GNR, que detêm os prédios, para assinarem novos contratos de arrendamento com aumentos de rendas que os moradores dizem agora que serão difíceis de suportar. A GNR diz que se trata de “uma actualização das rendas”, calculadas “em função dos rendimentos brutos dos agregados familiares”. 

"Já há muito tempo que se fala nisso e agora temos de nos sujeitar”, diz Alexandrina Ribeiro, 84 anos, que ali mora há “50 e tal anos”. Tem a seu cuidado o marido, que sofre de Alzheimer, que era da guarda e "estava habituado a ter uma vida resoluta", sem depender de ninguém. A isso, juntam-se os problemas de visão de Alexandrina. “A idade é muita. E o desgosto...”.  

“Nunca meteram aqui um prego”

A chuva miudinha de uma manhã de Janeiro afasta as pessoas da rua e confirma a pacatez do bairro. Manuel desce da varanda para contar como aquele bairro foi criado no tempo em que França Borges era presidente da câmara de Lisboa, que era amigo do general da GNR que lhe deu nome - Afonso Botelho - e terá cedido o terreno para construir o bairro. Se a memória não lhe falha, terá sido inaugurado em 1956. Dez anos depois lá chegava, vindo do também bairro da GNR no Alto do Pina.

Pela cabeça de Filipe Viriato, 73 anos, só passa uma coisa: “Estão-nos a mandar daqui para fora”, diz com a voz elevada e o punho cerrado, quem ali vive há 44 anos e teme agora pelo futuro.

Tem na ponta da língua os novos números que lhe apresentaram: “De 70 para 160 em 2018. Para 2019, 240, e, em 2020, sobe para 340”. O aumento será gradual. A irritação sobe de tom quando lembra que os Serviços Sociais “nunca fizeram obras nenhumas” lá em casa. Também Óscar Santos, 64 anos, e Alberto Guedes, de 72, não compreendem o aumento das rendas.

“Com a renda que me vão fazer pagar não tenho condições de pôr a casa digna para habitar”, queixa-se Óscar, que viu a mulher sofrer um AVC no ano passado, deixando-a com a mobilidade reduzida e dependente de visitas frequentes a médicos e fisioterapeutas.

Cada um foi fazendo obras como pôde, dizem os moradores. Só há dois anos “é que se lembraram” de lá ir pintar as paredes por fora, arranjar os telhados, diz Alberto. Mas, no interior das casas persistem as más condições, lembra Óscar. 

“O que se está a fazer aqui é uma vergonha. Se as casas tivessem condições como as que estão a fazer aqui. Agora a viver numa casa onde o chão está podre completamente. Os tacos do chão estão completamente podres. Estou indignado. Estou aqui há 32 anos e nunca meteram um prego. De Verão, as formigas de asas levantam-se lá dentro de casa. Temos que andar a gastar insecticidas e verniz”, aponta. Do mesmo se queixa Filipe, que convida a entrar na casa para mostrar a tinta a descascar das paredes e dos caixilhos das portas por causa da humidade.

Em resposta, a GNR explica que as rendas foram revistas no âmbito do Regime do Arrendamento Apoiado para Habitação (RAAH), “que impõe a todos os organismos do Estado a regularização dos contratos de arrendamento”. Os novos valores, especifica a GNR, foram calculados “em função dos rendimentos brutos dos agregados familiares”.

Quanto à falta de intervenção nas casas, os Serviços Sociais da GNR admitem que “sempre procuraram responder e assegurar a manutenção corrente dos prédios, tendo nos últimos anos investido na recuperação das coberturas e fachadas das fracções aí existentes”. E sublinham que “não recebem quaisquer verbas do Orçamento de Estado”, dependendo exclusivamente das quotas e serviços que os sócios pagam, “não acudindo apenas à habitação social, tendo de repartir as suas intervenções por todas as outras áreas de protecção social que lhes estão cometidas”.

“Para onde é que eu vou?”

Pelas contas de Óscar e Filipe, metade das casas estão ocupadas. Outras tantas vazias, algumas “há mais de 20 anos”. Dessas, algumas estão a agora a ser renovadas, por dentro e por fora. “É para fazer aos mais novos o que fizeram com os mais velhos”, diz Manuel. “Só que rendas destas os mais novos não podem pagar. Sabe porquê? Vemos o Cristo Rei, vemos o oceano, vemos a ponte. Quem ganha bem pode vir para aqui. Qualquer dia são só oficiais”, atira, explicando que antigamente estes bairros se destinavam a acolher as patentes mais baixas. 

E as contas que fazem não ficam longe das apresentadas pela GNR. O bairro tem 88 casas, sendo que 48 estão ocupadas com arrendamento social, detalharam os serviços. Para Fevereiro, está previsto atribuir mais cinco, no âmbito do concurso de arrendamento que está a decorrer. Seis casas estão reservadas para fazer face a “problemas urgentes” como incêndios, inundações, catástrofes naturais, alojamento de vítimas de violência doméstica e de beneficiários que precisem de cuidados de saúde urgentes. Ainda durante o ano, vai ser terminada a requalificação de mais cinco. As casas devolutas que restam deverão ser reconstruídas para serem entregues aos beneficiários “até ao final do ano”. 

“Se não fizerem obras não pago”, ameaça Óscar, antecipando tempos difíceis e recordando o que se passou no Verão de 2016, umas ruas abaixo, no bairro da Quintinha. Chegou a ser anunciado que o Governo ia despejar as 46 pessoas que moravam nas casas da guarda no Pátio da Quintinha, junto ao Palácio da Ajuda. Isto porque os moradores não preenchiam “os requisitos legais para a ocupação das habitações”, apontou, na altura, a ex-ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, que acabou, no entanto, por suspender as acções de despejo.

Os Serviços Sociais da GNR admitem que dos 48 contratos de arrendamento em actualização, 45 já foram assinados pelos arrendatários. Dos três que faltam, dois não habitam a fracção há mais de uma década, sendo que “o processo negocial [está] a decorrer com um único morador”.

A Junta de Freguesia da Ajuda diz desconhecer o que se está a passar naquele bairro e que, até ao momento, não foi contactada por qualquer residente. Ao PÚBLICO, o presidente, Jorge Marques, lembrou ainda que a junta “disponibiliza para toda a população um serviço gratuito de apoio jurídico,  o qual pode ser consultado sempre que necessário”.

Manuel dá por terminada a conversa para ir estender a roupa que acabou de lavar. Encolhe os ombros. “Eu já assinei o contrato. O que é que eu hei-de fazer? Para a rua não vou. Felizmente posso pagar a renda, fico aqui”. Mas quem não assinar vai para a rua, diz. “Eles estão à espera que a gente morra que é para eles ficarem com as casas. A gente não fica com casa nenhuma”, lamenta Filipe que apenas pede para que não lhe tirem o que foi construindo ao longo de 44 anos. “Com 73 anos para onde é que eu vou?”.

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