Mau trato com patrocínio

A propósito do programa de televisão Supernanny.

Estreou, recentemente, na SIC, o programa Supernanny. No contexto de cada episódio, e em presença de uma “ama”, é exposta uma situação problemática da vida diária de uma criança e colocados à discussão os desempenhos dos pais em relação aos seus filhos, com centenas de milhares de pessoas a ver.

É legítimo que uma estação televisiva discuta questões relacionadas com a parentalidade e com a educação e que, com isso, entenda estar a prestar um serviço público. Se bem que não se entende se, no caso de Supernanny ser um programa de informação, por que motivo não cumpre os critérios éticos que deveria respeitar ou, no caso de não o ser, não se percebe de que forma um programa de entretenimento pode ser alimentado com dilemas gravíssimos de famílias e de crianças reais. Em quaisquer circunstâncias, o aspecto mais sensível deste programa poderá resumir-se desta forma: será a exposição pública duma criança, tornando públicos aspectos de si que a comprometem para sempre, ao mesmo tempo que é violado um conjunto de direitos que a deveriam proteger, um mau trato? E, no caso de ser assim, quais as consequências que devem decorrer para quem permite que um filho seja exposto desta maneira e para quem pactua, por omissão, em relação a ela?

Comecemos por supor que estaremos a falar de um reality show alimentado por dramas relacionados com crianças que, eticamente, a SIC devia resguardar, reservar e proteger. Aliás, se uma estação televisiva não pondera os danos que a exposição, sem reserva, de crianças lhes pode trazer, com que autoridade moral cumpre um código deontológico, quando se trata de enquadrar notícias, por exemplo, em função do exercício de humanidade e de rigor que é expectável que tenha quando informa? É claro que se poderá sempre dizer, repito, que não se trata de informação, mas de entretenimento. Mas pode um drama real duma criança — no contexto duma exposição que a compromete, para sempre — ser considerado... entretenimento? E como pode um espectador, para efeitos de informação, reconhecer-se numa estação televisiva que, sempre que informa, escolhe não ser tablóide, por mais que, quando se trata de expor a vida das crianças, com a conivência explícita dos seus pais, usa “expedientes de tablóide”, não respeitando o direito à reserva da sua intimidade e da sua vida privada, a par de atentar contra outros direitos de personalidade (como “o direito irrenunciável e intransmissível que todo indivíduo tem de controlar o uso de seu corpo, nome, imagem, aparência ou quaisquer outros aspectos constitutivos de sua identidade”)? Aliás, será sério que, depois duma criança ser exposta sem reserva, no final de um episódio, se esclareça que tamanho mau trato mereceu a autorização expressa dos pais? Não seria responsabilidade da SIC, presumindo que os pais destas crianças tenham sido impulsivos ou irreflectidos ao autorizar tal exposição, protegê-los a eles e a elas, de forma a não se tornarem coniventes, por omissão, num mau trato?

Tentarei ser mais enfático: será uma exposição como aquela que vimos em Supernanny uma negligência ou mau trato? Um mau trato! Porquê? Porque um acto como aquele não só não será motivo de orgulho ou de integridade como, ao contrário, acaba por expor, denegrir e estigmatizar uma criança. No hoje como no amanhã. Por outras palavras: por mais que a intenção dos pais possa não ter ido no sentido de lhe provocar dolo ou danos, acaba por ter essas consequências. Ou seja: quando por ignorância, por precipitação, movidos por pré-juízos ou por preconceitos, ou por dificuldade de se descentrarem de si e se colocarem no lugar dos filhos os pais promovem sofrimentos cumulativos, maltratam. Se, no entretanto, parecem não ter estimado os custos dos seus actos sobre os seus filhos e o que eles possam trazer-lhes de irressarcível ou irreparável, e parecem não compreender a dimensão do sofrimento que lhes trazem, mais acabam por maltratar. Fá-lo-ão por má-fé? Muitas vezes, admito que não. Todavia, pergunta-se se, em circunstâncias como essas, reunirão os requisitos indispensáveis para representarem os seus interesses, patrocinarem os seus direitos e, em consequência disso, para os terem à sua guarda.

Como poderemos, então, considerar doutra forma que não seja como perigosa a atitude destes pais para com estas crianças? Será que, à falta da consciência do mau trato e do perigo que tudo isto representa para os seus filhos, e diante da sua permissão para que a sua exposição se dê em horário nobre, alguém os elucidou ou protegeu? E, perante uma exposição tão grave e tão irreparável, o que faltará mais para que o Ministério Público actue e proteja as crianças expostas, dado que estes pais terão protagonizado, aos olhos de todos, actos susceptíveis de serem interpretados como de negligência e de mau trato que a lei define como perigo? Quando, por maioria de razão (a fazer-se fé em notícias, entretanto, divulgadas) terão recebido 1000€ pelo programa do qual resultou este exercício tão grave?

Já agora, compreende-se que, num contexto destes, esta exposição seja protagonizada por uma psicóloga, desempenhando funções associáveis à prática da psicologia, por mais que se argumente que estará a desempenhar um argumento ou a assumir uma personagem? E não deve um técnico de saúde mental, seja em que circunstâncias for, resguardar a vida das crianças e, acima de tudo, protegê-las? E pode, porventura, reclamar respeito para si e para o exercício da psicologia e, ao mesmo tempo, deixar que uma criança, com o seu patrocínio, seja exposta, publicamente, sem pensar na forma como isso a irá afectar e no modo como isso irá comprometer a sua vida em todos os dias seguintes, após a conclusão daquele programa?

E como entender que uma violação tão grave dos direitos das crianças conte com vários patrocínios que apoiam a respectiva produção? Não teremos todos assistido a um mau trato com patrocínio? Por outras palavras, terão as marcas que se associaram a este acto de exposição pública de uma criança consciência da gravidade daquilo que o seu patrocínio subscreveu? Como podem esperar que, depois, os cidadãos as respeitem e considerem quando, para mais, algumas delas estão associadas às crianças?

E, finalmente, perante tudo isto, não seria sensato que a sociedade civil se manifestasse civicamente e se afastasse da estação televisiva e das marcas que apoiam um mau trato destes? Não devia ser um propósito nobre e sensato de todos nós que as passássemos a declinar e a repudiar? Este artigo foi originalmente publicado no site eduardosa.com

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