“A voz de Madalena Iglésias marca toda a década de 1960”

João Carlos Callixto, investigador na área da música portuguesa e especialista na década de 1960, contextualiza a importância da cantora, que morreu aos 78 anos. Fez uma das últimas entrevistas a Madalena Iglésias, há quatro anos para a RTP, e lembra o seu papel emblemático – e as suas mágoas.

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António Tilly e João Carlos Callixto comissariaram a exposição No Tempo do Vinil em 2007 no Museu da Música NUNO FERREIRA SANTOS
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Estando indelevelmente ligada ao Festival da Canção, que papel mais amplo tem Madalena Iglésias na música portuguesa?
Está [ligada ao festival], mas extravasa bastante a história do Festival da Canção. Podia ser uma cantora que ficasse conhecida apenas, e já seria muito, pela vitória no festival de 1966, mas ela teve uma carreira de uma década e meia, entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1970, que foi uma carreira de grandes êxitos, de primeira figura na nossa música numa altura em que a canção ligeira tinha uma grande prevalência, em que as orquestras estavam no primeiro plano e os cantores, as estrelas maiores da rádio e da televisão, assumiam grande protagonismo.

Ao vencer o festival com Ele e ela, e nessa terceira participação portuguesa no Festival da Eurovisão, acaba por também levar pela primeira vez ao festival os novos ritmos pop – as participações da Simone de Oliveira em 1965 e do António Calvário em 1964 eram canções mais melancólicas, de alguma maneira aparentadas ao fado.

Esta carreira curta foi ao mesmo tempo de grande relevo, com uma figura e uma voz…
Impactantes.

Ia perguntar-lhe se podemos dizer “icónica”. Que características de Madalena Iglésias destacaria como intérprete?
Além de ser uma mulher belíssima e de ter uma voz extraordinária, [tinha] uma voz própria – e por isso foi escolhida pelos melhores compositores, pelos melhores letristas, trabalhou com os melhores arranjadores, foi disputada por editoras musicais. Começou a carreira na editora Alvorada, no Porto, rapidamente mudou para uma editora espanhola, de Barcelona, e passou também por uma outra editora portuguesa, a Tecla, do maestro Jorge Costa Pinto, que foi quem a dirigiu no festival de 1966 e um dos seus grandes colaboradores ao longo de toda a sua carreira.

É importante dizer que, e para nós hoje parece curta, para o Portugal da altura a sua carreira não era assim tão curta. Maria de Fátima Bravo, que todos recordam pelo Vocês sabem lá, ela, sim, teve uma carreira de quatro, cinco anos. Foi uma estrela fugaz e que desapareceu por causa do casamento. No caso dos conjuntos de rock da altura, o que acabava com os grupos era o serviço militar, a guerra; no caso dos cantores, especialmente e infelizmente das cantoras, era o casamento que acabava com muitas carreiras. 

O que tornava a sua voz e as suas escolhas tão distintivas?
A voz da Madalena Iglésias marca toda a década de 1960 e uma das suas características é conseguir trazer para a ribalta tanto a canção ligeira que vinha da década de 1950, como, pontualmente, alguns números ligados ao folclore português e – e isto é muito importante no caso da Madalena Iglésias, porque não foram muitas as cantoras que o conseguiram fazer – os novos ritmos pop. É uma voz que consegue abarcar todos estes géneros, sendo popular em todos eles, cantando em outras línguas e tendo uma presença no cinema – fez duetos musicais como É tão bom amar que é talvez a canção mais conhecida com o António Calvário, participou com ele também no filme Sarilho de Fraldas [1966]. Era uma presença sempre, sempre muito forte na sociedade portuguesa na década de 60.

Havia a famosa, suposta rivalidade com a Simone de Oliveira, quando elas as duas eram os nomes grandes dentro do espectro da canção ligeira ao longo de toda a década. Os melhores músicos trabalhavam com ambas. Eram vozes extraordinárias e distintas – e elas tinham vozes bem distintas, talvez uma voz mais doce da Madalena Iglésias –, todos as disputavam. E o ritmo de gravações… Já que os álbuns não eram o registo de eleição da indústria musical portuguesa, porque as pessoas não tinham dinheiro para os comprar, a Madalena Iglésias teve EP, discos de 45 rotações com quatro faixas uns atrás dos outros. Houve anos em que saíam dois e três e quatro discos de seguida. Só os publicavam porque os vendiam.

Falando nessa rivalidade, e olhando para o Portugal da ditadura, a Desfolhada portuguesa de Simone tem uma camada extra de significado no seu contexto político-social. Nessa carreira tão profícua, Madalena teve momentos do género ou era mais focada no entretenimento e na fruição?
É uma questão delicada. Nessa recta final da década de 60, aliás, em 1969 com a Desfolhada, é também criado pelo jornalista João Paulo Guerra o termo “nacional-cançonetismo”. Na altura fazia sentido, porque as fórmulas da canção ligeira estavam algo desgastadas. Passaram 50 anos e há muita gente que continua a usar o termo nacional-cançonetismo, como se toda aquela canção ligeira fosse igual – e não era.

É também nessa altura que a canção ligeira está a ser recriada. A Madalena Iglésias termina a carreira logo no início da década de 1970, mas vai absorvendo essas mudanças. Tinha sido introdutora dos ritmos pop ligados às novas modas juvenis e na recta final da década de 60 já traz para as canções textos de Almeida Garrett, por exemplo, [com] Barca bela. Quem tenta ter uma voz própria nesta altura continua a actualizar o repertório. No início da década não fazia muito sentido serem cantados grandes escritores portugueses no âmbito da canção ligeira. [Mas] na altura, se apareciam Ary dos Santos ou Maria Teresa Horta a escrever para canções, já para não falar de David Mourão-Ferreira…

A Madalena Iglésias trazia uma grande mágoa com o termo nacional-cançonetismo, porque tinha noção de que a sua carreira não podia de maneira nenhuma ser reduzida a algo que se queria que fosse homogeneizador, mas que de facto não era. É muito importante conhecer o resto da sua carreira, porque são 15 anos muito ricos e que infelizmente não estão disponíveis nem em CD, nem em plataformas digitais. A quase totalidade das editoras por onde passou faliu e os registos nunca mais foram recuperados e hoje só mesmo no mercado de coleccionismo e algumas disponibilizações online no YouTube… é uma parte muito pequena de uma obra que se torna muito importante conhecer. 

Correção, às 10h40 de 17 de Janeiro: a data da participação de António Calvário referida por João Carlos Callixto diz respeito a 1964 e não a 1966, como foi erradamente transcrito 

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