Na China, um ranking social vai listar os bons e os maus cidadãos

Pequim está a desenvolver um sistema de classificação e hierarquização social a partir dos dados pessoais que os cidadãos entregaram às aplicações móveis. E essa pontuação pode determinar o acesso ao emprego, o lugar num comboio ou até a descoberta de um parceiro sexual.

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Reuters/EDGAR SU

Quanto dinheiro tem no banco? Tem alguma multa por pagar? Alguma vez disse mal do governo na Internet? E de videojogos gosta? Agora imagine que, através destas perguntas, o Estado determinava se era ou não um bom cidadão, que lhe dava uma nota. Uma pontuação de três dígitos, digamos. Esse valor podia subir ou descer conforme o seu comportamento. E essa classificação, consultável a qualquer momento no seu telemóvel, determinaria se era contratado por uma empresa; se podia pedir um empréstimo para uma casa, ou se tinha de pagar caução por um aluguer; mas também se podia viajar em primeira classe num comboio ou mesmo se o seu perfil estaria mais ou menos visível numa aplicação de encontros íntimos. Se for um bom cidadão, terá a vida facilitada. Se se portar mal, transformar-se-á num pária.

O que parece ser mais um episódio da série distópica Black Mirror (e há um parecido — o primeiro da terceira temporada) é algo bem real que já está a acontecer na China. O gigante asiático está a desenvolver o que o Conselho de Estado chinês designou num documento em 2014 como um “sistema de crédito social”, que agregará até 2020 os dados de vários sistemas de classificação de cidadãos que já existem a nível regional, bem como os rankings de crédito financeiro que foram lançados pelas empresas tecnológicas do país.

A base deste sistema estará, em grande parte, na quantidade de dados que os chineses cederam voluntariamente, nos últimos anos, a aplicações móveis análogas às ferramentas do Google ou da Apple. Os dados bancários, as dívidas e os hábitos de consumo de utilizadores de aplicações como a ubíqua Alipay, do gigante Alibaba, são variáveis de sistemas de medição de reputação como o Zhima Credit, que classifica a fiabilidade de uma pessoa de 350 a 950 pontos. É uma espécie de rating pessoal, mas para o qual contam muito mais do que aspectos financeiros: gastar demasiado tempo em videojogos, por exemplo, é entendido como um sinal de irresponsabilidade (perde-se pontos); comprar fraldas é o sintoma inverso, um indício de responsabilidade (ganha-se pontos).

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A ubiquidade dos smartphones e o recurso aos pagamentos digitais ajuda Pequim a monitorizar e controlar a vida dos seus cidadãos Lusa/Wu Hong

Empresas como a Alibaba e a Tencent negam oficialmente que estejam a ceder estes seus dados ao Governo chinês. No entanto, e como explica a Wired num longo artigo sobre o tema, Pequim tem tentado exercer um controlo cada vez maior sobre o sector tecnológico privado do país. As empresas têm um historial de colaboração com o Estado no desenvolvimento de ferramentas de controlo político e magnatas da área como Jack Ma têm assento em órgãos consultivos e de regulação que se encontram sob a direcção do Partido Comunista, como a Sociedade Chinesa para a Internet.

Há provas de pontos de contacto entre o Estado e os actuais sistemas privados de reputação. E também há vítimas. O jornal canadiano Globe and Mail, tal como a Wired, conta a história do jornalista Liu Hu. Em 2013, o autor de um blogue no qual eram frequentemente denunciados casos de corrupção política foi detido e acusado de difamação. Três anos depois, foi condenado ao pagamento de uma multa de cerca de 80 euros. Entre tentativas de recurso e um erro no envio do dinheiro, Liu foi declarado como devedor ao Estado — o seu nome foi acrescentado a uma lista pública, a Lista de Pessoas Desonestas. No ano seguinte, em 2017, o jornalista começou a sentir as consequências desse conflito através dos sistemas privados de classificação: neste momento, e devido à sua reduzida reputação, não pode comprar casa nem andar de avião. Os pagamentos não são aceites e não lhe é concedido crédito.

O jornal canadiano refere ainda a história de uma criança chinesa que também se encontra na lista negra por ter herdado uma dívida do pai, um homem condenado à morte pelo homicídio da mulher (os custos da execução dos presos na China são normalmente imputados à família – neste caso, à filha e ao avô paterno desta). E de um homem que também está listado por ter roubado tabaco no valor de 47 euros. A arbitrariedade e opacidade destas sentenças, a impossibilidade de recurso e as suspeitas de castigos com motivações políticas são aspectos que preocupam organizações críticas do Governo chinês como a Human Rights Watch.

Para Rachel Botsman, autora de um livro recentemente publicado sobre os sistemas chineses de classificação social, o que está em causa é um mecanismo omnipresente de autoritarismo, que não só castiga como dissuade a maioria dos cidadãos de fazerem ou expressarem algo desfavorável a um regime – seja a publicação de um artigo jornalístico, a participação numa manifestação ou uma crítica nas redes sociais. E é também um alerta sobre os riscos que se correm ao entregar voluntariamente dados pessoais a serviços privados: “Estamos a aproximar-nos do sistema chinês, mesmo que não o saibamos.”

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