Genomas dão novas pistas sobre invejável resistência à sida em macacos

Investigadores sequenciaram o genoma de um macaco que, quando é infectado pelo vírus da imunodeficiência símia, consegue evitar o desenvolvimento da doença.

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O mangabei-cinzento (Cercocebus atys) consegue coexistir com o vírus sem desenvolver a doença Centro Nacional de Investigação de Primatas de Yerkes e Universidade Emory

O mangabei-cinzento (Cercocebus atys) é uma das espécies de primatas não humanos que, quando é infectado pelo vírus de imunodeficiência símia (VIS), o equivalente ao VIH, não desenvolve a doença. Porquê? Uma equipa de investigadores nos EUA decidiu sequenciar o seu genoma e compará-lo com o dos humanos e de outros primatas não humanos (como o macaco Rhesus) para tentar esclarecer esta questão. No artigo publicado esta quinta-feira na revista Nature, os cientistas destacam duas diferenças genéticas que encontraram e que podem ajudar a explicar (ou, pelo menos, a explorar) a resistência destes pequenos macacos de pêlo cinzento.

“Estamos a aproveitar uma experiência da evolução que ocorreu ao longo de muitos milhares de anos e que revela que é possível estar infectado com VIS sem que isso evolua para sida”, diz num comunicado de imprensa Guido Silvestri, cientista no Centro Nacional de Investigação de Primatas de Yerkes, na Universidade Emory, nos EUA, que coordenou o estudo agora publicado na Nature. Neste trabalho, os investigadores sequenciaram o genoma do mangabei-cinzento, um hospedeiro natural para o VIS que, mesmo com uma elevada carga viral, consegue manter níveis saudáveis de células imunitárias e não desenvolve a doença.

Este macaco, encontrado sobretudo nas florestas do Senegal e Gana (considerado extinto na Guiné-Bissau), não é o único que consegue coexistir com o vírus, sendo conhecidos outros exemplos de resistência noutros símios, como o dril ou o macaco-verde. Esta estranha e invejável imunidade à sida tem sido estudada pelos cientistas não só porque não é encontrada nos humanos mas porque contrasta também com o que é observado noutros primatas não humanos, hospedeiros não naturais que ficam doentes quando são infectados pelo VIS. Como, por exemplo, o Macaca mulatta, também conhecido como macaco Rhesus.

Mas, desta vez, os investigadores dedicaram-se a uma análise minuciosa do genoma do resistente mangabei-cinzento e compararam os dados com o que sabemos sobre os (mais vulneráveis) humanos, o macaco Rhesus e outros primatas não humanos. Seguir o rasto do VIS nestes animais pode ser determinante quando sabemos que o VIH que afecta os humanos teve origem neste vírus encontrado em primatas não humanos, como o mangabei-cinzento e o chimpanzé.

“Encontrámos duas grandes diferenças em proteínas no sistema imunitário do mangabei-cinzento”, refere David Palesch, investigador na Universidade de Emory e um dos principais co-autores do artigo, no comunicado sobre o estudo. Uma das diferenças claras foi encontrada numa molécula (ICAM2) que normalmente tem uma função na adesão intercelular no sistema imunitário. No mangabei-cinzento, há uma parte que falta no gene ICAM2 e isso faz com que a proteína cujo fabrico ele comanda não seja funcional.

Mas Steve Bosinger, o outro co-autor principal do trabalho e investigador na Universidade de Emory, sublinha ao PÚBLICO que “o gene mais interessante” que encontraram foi o TLR4, que desempenha um papel importante no sistema imunitário desencadeando geralmente uma reacção inflamatória na presença de determinados elementos bacterianos. “É um dos principais genes que controlam as respostas do sistema imunitário às bactérias e esta descoberta foi surpreendente porque a infecção por VIH/VIS e a sida é viral. Ainda mais interessante foi perceber que a mutação no TLR4 também estava presente noutras espécies que não têm sida”, refere.

O mangabei-cinzento tem uma versão diferente do gene TLR4 quando comparada com a do macaco Rhesus, por exemplo, e que tem como efeito uma redução da reacção inflamatória. “Outros grupos já demonstraram que a infecção pelo VIH faz com que a parede do intestino fique danificada e, assim, a libertação de bactérias na circulação sanguínea provoca uma ‘activação excessiva’ do sistema imunitário que acaba por conduzir à sida. Pensamos que esta mutação no Cercocebus atys e noutras espécies permite que eles evitem essa ‘sobreactivação’”, explica.

Não basta um gene isolado

E estas diferenças genéticas também foram detectadas quando se comparou o genoma do mangabei-cinzento com os humanos? “Na maioria dos casos, sim”, responde Steve Bosinger. A comparação entre genomas foi mais centrada entre o Cercocebus atys e o macaco Rhesus “porque essas duas espécies estão muito mais próximas em termos evolutivos”. Mas o cientista confirma que em muitos dos genes estudados, incluindo o TLR4 e o ICAM2, “também existem grandes diferenças entre o macaco-cinzento e os humanos”.

Em estudos anteriores, Guido Silvestri e a sua equipa dedicou-se também a fazer comparações entre os sistemas imunitários desta espécie de primatas e de outros hospedeiros naturais e o de humanos infectados pelo VIH. Agora, foi mais longe e comparou genomas completos para encontrar mais pistas sobre esta cobiçada imunidade à sida. E a seguir? Segundo o artigo, que adianta que na última década foram sequenciados mais de 25 genomas de espécies de primatas não humanos, o plano é sequenciar e comparar os genomas de outras espécies de hospedeiros naturais.

Além disso, também é crucial explorar as diferenças que já foram encontradas. “É preciso fazer estudos em que estes genes, o ICAM2 e o TLR4, são manipulados in vivo durante a infecção por VIS para, assim, perceber como afectam directamente a natureza não patogénica da infecção nesta espécie hospedeira”, escrevem os cientistas no artigo. “Uma vez que encontrámos uma mutação que afecta as respostas antibacterianas, também estamos a olhar para o ‘microbioma’, as populações bacterianas nos intestinos desses macacos”, acrescenta Steve Bosinger.

 As descobertas feitas agora reforçam a ideia de que em cada espécie de primatas existem vários mecanismos distintos que podem contribuir para essa protecção em cada indivíduo, ao invés de mutações em genes isolados, refere o artigo. Steve Bosinger simplifica este raciocínio mas com uma dose de optimismo: “Sabemos que é provável que seja necessário mais do que uma mutação num único gene para uma espécie conseguir evitar a sida, mas as mutações que encontramos aqui são peças importantes do puzzle para conseguir prevenir e até mesmo curar a sida.”

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