Os que entram sozinhos em 2018

Para muitos, a altura de Natal e Ano novo é sinónimo de união, festa e partilha. Uma realidade bem diferente da de quem vive em solidão.

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Daniel Rocha

Se o Natal é tempo de reunião e convívio em família, o ano novo é altura para celebrar com as pessoas mais chegadas. Para quem vive em solidão, é uma altura que acaba por amplificar este estado de alma, fazendo disparar uma série de fragilidades.

“Para quem se sente desprovido de laços familiares ou amicais, a solidão pode ser ainda mais sofrida no meio da fantasia das cores, das músicas de Natal, das badaladas e fogo-de-artifício da passagem de ano”, comenta José Machado Pais, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, autor de inúmeras publicações, entre elas Nos Rastos da Solidão. “Embora na sociedade de consumo a circulação dos afectos se faça através de bens materiais, pode ser frustrante chegar-se ao Natal e não ter nenhum presente, nenhum sinal de lembrança de que se é querido”.

Por definição, a solidão pode ter uma carga positiva ou negativa, esclarece o investigador, mas em ambos os casos traduz-se num “estado de alma”. A distinção faz-se entre a solidão de quem deseja estar só, por uma questão de bem-estar, e a “solidão sofrida”, que se “manifesta através de um sentimento de exclusão social”. Neste caso, indica ainda, pode ser considerada uma patologia social.

Esta solidão pode ser fruto das mais diversas razões e é “transversal a todas as idades”, desde “jovens estudantes vítimas de bullying” a “emigrantes socialmente desintegrados”, passando por mulheres vítimas de violência doméstica, descreve. Porém, é uma condição que tende a agravar-se entre “idosos com problemas de autonomia e condições precárias de saúde”.

“Quando um velho enfermo sente que deixou de ter significado para os outros, vendo-se abandonado pela própria família, a sua solidão é expressão de uma morte social”, levando inclusive a pensamentos de suicídio.

É difícil saber quantas pessoas lidam com este problema, mas as estatísticas ajudam a ter uma noção, ainda que vaga – concretamente no caso dos idosos, que representam uma das camadas mais afectadas. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e dos censos de 2011, existem aproximadamente 866.800 famílias clássicas unipessoais, ou seja, pessoas a viverem sozinhas. Embora não haja necessariamente uma ligação com a solidão, é possível ver que dessas mesmas pessoas, cerca de 406.900 são idosos, com mais de 65 anos. Os dados mostram ainda que esse valor aumenta significativamente à medida que a idade avança: no grupo dos 65 a 69 anos havia aproximadamente 76 mil, dos 70 aos 74 anos eram 89 mil e com 75 ou mais anos são 241.500.

Segundo o relatório de contas da SOS Voz Amiga de 2016 – uma linha aberta a pessoas que estejam a lidar com situações do foro emocional, nomeadamente a solidão – houve um total de 3701 chamadas atendidas em 2016, um aumento de 11% face a 2015.

Maria Azenha, ex-vice presidente desta organização – e que se mantém como colaboradora – lembra que mesmo as pessoas que ligam para a linha nem sempre admitem que se sentem sós e que precisam de ajudam. Algumas “começam uma conversa que aparentemente não tem nada a ver com solidão” e só quando se sentem mais à vontade é que o admitem.

Há casos de todo o tipo: “já nos telefonaram dos hospitais, pessoas que estão à espera de atendimento, que não têm ninguém com elas e que querem um ser humano do outro lado [do telefone]”. Muitas estão, inclusive, a receber tratamento de psiquiatras e “dizem abertamente que estão a ser acompanhadas por medicação”, conta ainda.

“Quanto mais isoladas estão, menos facilidade têm em desenvolver amizades”, aponta Maria Azenha. E nem sempre é fácil procurarem ajuda. “Algumas pessoas, pela própria vivência da solidão, tendem a desconectar-se com o mundo, fecham-se em casa, não têm conhecimento dos serviços de apoio disponíveis. Outras, não querem falar de experiências de vida que as magoam”, ilustra.

A linha SOS está lá para dar uma “palavra amiga”, mas não para apontar soluções. “O nosso objectivo é levá-los a descobrir o caminho”, justifica. No limite, fazem sugestões vagas, perguntando, por exemplo, se a pessoa consideraria útil consultar um médico, mas nunca especificando um tratamento ou um profissional específico. Até porque, admite ainda, seria muito difícil em termos logísticos conseguir fazer esse tipo de indicações para todo o país. Por vezes este processo demora tempo e acontece no decurso de várias chamadas (regra geral, com diferentes pessoas do outro lado da linha), conta a ex-vice presidente, que faz também trabalho de voluntária.

Que ajudas estão disponíveis?

 “A solidão é uma forma de exclusão social”, esclarece José Machado Pais. O investigador sublinha a importância do investimento em “políticas sociais centradas na reversão destas formas de exclusão afectiva”. Por outras palavras, a promoção da solidariedade e convívio social. Exemplos disso, aponta, são as universidades seniores.

“Mas há muito mais a fazer”, comenta, oferecendo alguns exemplos: “incrementar as brigadas de apoio a doentes com dificuldades de locomoção; incentivar a reinserção profissional de desempregados que vivem na rua, muitos deles imigrantes; e assegurar pensões dignas e assistência médica para quem delas precisa”.

As entidades locais asseguram alguns serviços, que visam o combate ao isolamento. Em Lisboa, por exemplo, a autarquia tem programas como o serviço de tele-assistência, em protocolo com a Fundação Portugal Telecom. É gratuito e está disponível a séniores e pessoas com deficiência – 24 horas por dia, sete dias por semana –, respondendo a situações de emergência, mas também “apoio na solidão a todos aqueles que se encontrem em situação de vulnerabilidade ou dependência (física ou psicológica)”, segundo diz a câmara. Actualmente são acompanhados cerca de 300 beneficiários.

Existem ainda outros programas como a Oficina da Cidadania, o Projeto Lisboa (C)Idade Maior, Lisboa + 55, Casa Aberta, Banco de Voluntariado e Café Memória. Muitos destes programas são estabelecidos com outras entidades, como é também o caso do projecto Envelhecer Vivendo 2017. Feito em parceria com o Projecto Alkantara – Associação de Luta Contra A Exclusão Social, está direccionado para bairros como Loureiro e Ceuta Sul, em Alcântara, Campo de Ourique e Campolide, e visa promover a “inclusão social e comunitária dos idosos e/ou reformados através de acções de capacitação e trabalho para a autonomia”.

No Porto, embora não existam tantos programas que actuem nesta questão da solidão, destaca-se o programa Aconchego, que faz a ligação entre idosos que procuram companhia e jovens estudantes que necessitam de habitação a um preço acessível. É um modelo já comum em países como o Reino Unido, através de sites como a Homeshare UK. De momento, existem 15 pares (de jovens e idosos) ao abrigo do programa, de acordo com o gabinete de comunicação da autarquia do Porto.

José Machado Pais aponta ainda que “a reactivação de laços sociais perdidos ou precarizados é o mais eficaz dos combates à solidão”, tendo em conta que esta resulta de uma “desfiliação social”.

De acordo com Henrique Joaquim, director-geral da Comunidade Vida e Paz – cuja acção se centra no apoio a pessoas em situação de sem-abrigo – umas das questões mais importantes no processo de reinserção destas pessoas é garantir que tenham “um conjunto de relações” que sirvam de suporte. Podem ser relações familiares, mas não necessariamente. Até porque, continua, as fontes de autonomia não estão apenas ligadas às questões materiais – de habitação e rendimento, por exemplo –, mas também ao “lado espiritual”.

Na sua maioria, as pessoas em situação de sem-abrigo vivem num estado de solidão, garante o director-geral, lembrando porém que existem situações em que se formam grupos de entreajuda. Chega a haver casos em que as pessoas falam de si na terceira pessoa, exemplifica. “Nenhum de nós consegue viver sem relações”, remata.

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