“A Entidade passa a ter muito mais competências, mas muito menos poderes”

A ex-presidente da ECFP considera que a fiscalização dos financiamentos políticos vai ficar prejudicada com a alteração de modelo agora aprovada. E discorda da aplicação retroactiva da lei e da isenção total de IVA aos partidos.

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Margarida Salema esteve à frente da ECFP até Outubro Miguel Manso

Margarida Salema, a professora da Faculdade de Direito de Lisboa que esteve à frente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP) durante oito anos (até Outubro passado) tem uma posição muito crítica em relação à lei. Considera que a fiscalização das contas dos partidos e das campanhas vai ficar prejudicada e diz que a alteração do modelo, com aplicação retroactiva, é “muito duvidosa do ponto de vista do Direito”. Sobre a isenção do IVA, defende que não se aplica às campanhas, sob pena de inconstitucionalidade. 

Como é que avalia o aumento de poderes da Entidade das Contas?
Tenho dificuldade em perceber como é que a ECFP, cuja composição não foi alterada, cujo estatuto não foi reforçado, mantém um conjunto de poderes que pertenciam a ela própria e recebe todos os poderes que o Tribunal Constitucional tinha sobre contas dos partidos e campanhas e também os do Ministério Público, que intervinha nos processos contra-ordenacionais. Tenho dificuldade em compreender como é que a Entidade vai conseguir levar avante este trabalho.

A revogação da norma que permitia à ECFP regulamentar e uniformizar a forma de apresentação das contas pelos partidos não vai dificultar ainda mais o trabalho de fiscalização?
Se a Entidade perde esse poder regulamentar, complica-se muito a sua função. A ECFP passa a ter muito mais competências, inclusive competências de um órgão jurisdicional, mas muito menos poderes. E não há uma recomposição estatutária: continua a ser uma entidade administrativa, o TC continua a ter poder disciplinar sobre a ECFP, mas são lhe dadas muito mais competências. Não percebo que entidade é esta.

Mas o regulamento publicado em 2013 pela ECFP para uniformizar as contas mantém-se em vigor?
Olhe, que boa pergunta! A partir do momento em que a Entidade deixa de ter poder regulamentar…

A fiscalização das contas dos partidos e das campanhas fica, portanto, prejudicada?
Se uma entidade fiscalizadora é atafulhada de matéria para tratar mas não lhe são dados poderes nem meios, não sei como vai trabalhar. Se foi feita uma alteração desta dimensão mas lhe foram retirados os poderes regulamentares, se foram restringidos os poderes de emanar recomendações, se, em suma, a Entidade se mantém com a mesma composição, não basta dar um reforço de meios. Era preciso reequacionar todo o papel da ECFP neste novo sistema. Receio que, assim, a Entidade veja o seu papel diminuir na fiscalização.

A aplicação retroactiva da lei incomoda-a?
É um ponto muito importante, porque a lei diz que se aplica aos processos pendentes. Existem processos pendentes desde 2009 relativamente aos quais a entidade já emitiu parecer ao abrigo da lei anterior, como é que agora a mesma entidade, que já existia, vai transformar em decisões os pareceres que emitiu para o Tribunal Constitucional? Uma entidade que emite um parecer não decide o seu próprio parecer. Isto parece-me que põe em causa o mais elementar princípio da legalidade da competência. Tenho muitas dúvidas sobre esta aplicação retroactiva. Porventura, essa alteração da competência de órgãos no âmbito de processos pendentes pode sofrer de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade. Do ponto de vista dos princípios gerais do direito público, é mais que duvidoso.

E a isenção total do IVA?
Em bom rigor, quem decide em última análise da aplicação, ou não, da isenção é a Autoridade Tributária. No passado, a partir de 2009, a ECFP verificou que havia uma dualidade na recepção do IVA: as despesas eleitorais podiam ser contabilizadas com IVA e a subvenção era paga com IVA, e depois era pedida a restituição do IVA. Isso foi detectado e resolvido. Outra situação foi o facto de a Entidade ter defendido desde sempre, até à última campanha eleitoral, que a isenção do IVA só se aplicava à actividade corrente dos partidos e não quando entram em campanha eleitoral. A lei está dividida de modo a que umas regras se aplicam aos partidos e outras às campanhas, há um regime dual dentro da lei do financiamento. A verdade é que havia muita confusão sobre se os bens adquiridos serviam para difundir a mensagem partidária, como prevê a lei em vigor. Agora o que fazem é estipular a devolução do IVA da aquisição de qualquer bem ou serviço.

Esta isenção agora total aplicar-se-á às campanhas eleitorais?
Em princípio, não podem ser adquiridos bens que sejam activos tangíveis durante a campanha eleitoral, caso contrário os partidos encontravam maneira de comprar equipamentos durante a campanha que seriam subvencionados pelo Estado como despesa de campanha e depois serviriam para a actividade partidária. A lei diz que são receitas da campanha todas as verbas que entram na conta da campanha, mas os partidos querem pôr dinheiro na campanha mas não querem que esse dinheiro entre nas contas como receita da campanha. Por isso põem como adiantamento, para que depois seja subtraído às contas da campanha. Se não as campanhas davam sempre lucro. O TC diz que não tem importância, mas tem. Isto é política.

Mas haverá isenção de IVA nas campanhas?
Eu continuo a entender que não, mas é uma questão de interpretação.

Se o tribunal considerar que há isenção de IVA nas campanhas, e havendo retroactividade da lei, então os processos do PS que estão em tribunal para a restituição do IVA seriam decididos a favor do PS?
Pode, se vier a ser entendido que a isenção se aplica ao IVA das campanhas. Nós sempre entendemos que não, por violar o princípio da igualdade de tratamento das candidaturas. Mas se for feita essa interpretação, eu entendo que é inconstitucional. Não a norma, mas a interpretação.

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