Legislar na clandestinidade?

O Presidente da República não pode, de forma alguma, deixar o circo instalar-se no coração da cidade.

A aprovação secreta, pelos partidos políticos reunidos na Assembleia da República, de uma série de benefícios para os mesmos partidos políticos é verdadeiramente preocupante.

Uma das medidas aprovadas é o fim do tecto máximo das doações aos partidos que, conforme o CDS chamou a atenção, arrisca transformar os partidos em “empresas de angariação de fundos” e abre o caminho à lavagem de dinheiro e a novos mecanismos de corrupção.

Outra medida aprovada foi o alargamento da devolução do IVA a todas as actividades partidárias, isto é, a partir de agora, os partidos montam as suas barracas de comes e bebes ou restaurantes sofisticados, nas suas sedes ou fora delas, e terão direito à devolução do IVA dos produtos por si adquiridos! (Lembre-se que, actualmente, a isenção de IVA é só para actividades de propaganda partidária e eleitoral). Igualmente o CDS considerou esta medida como grave e perversa porque se retira a ligação existente entre as despesas isentas de IVA e as actividades de divulgação política e ideológica.

Se estas críticas já apontam para a gravidade do golpe financeiro dado pelos partidos políticos neste fim do ano, a verdade é que, para além do seu chocante conteúdo, estas medidas foram tomadas de uma forma absolutamente inaceitável.

Basta ler as notícias no PÚBLICO ao longo dos dias para sabermos que, no que toca ao grupo de trabalho que elaborou esta proposta de legislação aprovada à última da hora, não há actas das reuniões, nem registo da audição ao presidente do Tribunal Constitucional, nem um só papel guardado, muito menos registado no site do Parlamento, com as propostas de redacção da lei ou de que partidos vieram!

O grupo de trabalho criado pelos partidos trabalhou na clandestinidade! Dir-se-ia que em democracia se aceita a necessidade de os partidos trabalharem na semiclandestinidade quando tratam dos seus dinheiros! Veja-se que o PÚBLICO até descobriu um email trocado entre os oito deputados que prepararam tudo, em que as propostas de alteração em discussão não tinham a identificação do proponente, seja o deputado, seja o partido. Regras de clandestinidade aplicadas no funcionamento da Assembleia da República que são uma evidente afronta ao regime democrático.

Acrescente-se que esta legislação foi anunciada pelo secretário da Mesa do Parlamento, no final da reunião da conferência de líderes, no dia 19 de Dezembro, como tratando-se de uma “alteração cirúrgica da lei para dar resposta a sugestões do Tribunal Constitucional”; isto é, as alterações visariam alargar as competências da Entidade das Contas de forma a não só fiscalizar as contas dos partidos mas também a poder aplicar sanções. Uma mentira descarada já que, a coberto desse objectivo louvável, o que as alterações legislativas trazem de mais importante são, evidentemente, as benesses financeiras para os partidos.

Chega a ser cómico, se não fosse escandaloso, que uma pessoa com responsabilidades políticas no PS, depois de confrontado pelo PÚBLICO com o facto de a nova lei estipular que estas regras agora aprovadas se aplicam aos “processos novos e aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor que se encontrem a aguardar julgamento”, tenha respondido que “essa redacção foi feita para responder aos processos que estão no Tribunal Constitucional e na Entidade das Contas. Não foi feita para os que estão no Tribunal Administrativo e Fiscal [e que valem vários milhões de euros para os partidos, nomeadamente o PS]. Se puder aplicar-se, melhor. Não foi escrita certamente com essa intenção”.

Como é possível denegrir assim a actividade legislativa? Então temos de aceitar que os deputados não estudam antes de legislar? E não sabem o que legislam? Desconhecem consequências das alterações legislativas? Em matéria de tanta importância? E é por acaso que vão dar milhões de euros aos partidos retirando-os a todos nós? Seremos todos imbecis?

Estamos perante uma verdadeira burla e face ao lamentável e inaceitável comportamento dos partidos — com a excepção do CDS e do PAN —, e até independentemente do exacto conteúdo destas alterações legislativas, parece inequívoco que o Presidente da República tem de vetar a lei. Não pode, de forma alguma, deixar o circo instalar-se no coração da cidade.

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