O ano que podia ter acabado a meio

Podia ter sido menos mau no mundo, quase perfeito por cá, mas 2017 não acabou a tempo e não foi mesmo “saboroso”. Terá sido, pelo menos, melhor do que esperávamos?

Vá lá, não foi assim tão mau. Talvez não, se se lembrar do Guia Pessimista para 2017, que a Bloomberg publicou há um ano.

Estávamos, então, na ressaca da eleição de Donald Trump e o pesadelo parecia estar mesmo à porta: “Legitimados pela eleição americana, votantes pela Europa fora, começando pela Holanda, dão vitórias a líderes que querem fechar fronteiras, rasgar acordos de comércio livre e até sair da Europa.” As notícias que se seguiam nesse guia de previsões eram um cenário saído de Dante: Le Pen eleita e a lançar um referendo sobre a saída do euro; Beppe Grillo a ganhar legislativas antecipadas em Itália; Merkel a perder as alemãs; um grupo de países do Leste a promover referendos para sair da NATO; Schengen a dissolver-se; a Grécia a implodir (e sem poder ter um resgate europeu).

Chegámos ao fim do ano e não batemos no fundo: Macron desceu dos céus, literalmente, e ganhou as presidenciais francesas, refazendo o sistema político do nada. Na Holanda, a extrema-direita perderia também. Beppe Grillo continua à espreita, mas as eleições em Itália só chegarão no prazo regular. Schengen continua de pé, mais ou menos, e a Grécia — espante-se — está a meses de sair limpa do terceiro resgate.

Um mundo no limbo

Visto assim, à distância, até apetece a ilusão de ter sido um ano bom. Mas foi um ano no limbo, sempre à espera do próximo obstáculo. Sim, houve outros tantos que não se materializaram, como os protestos em Washington logo após a posse de Trump, que a Bloomberg antevia como provocando “uma profunda divisão entre os republicanos”. Olhando para trás, dá vontade de perguntar se o guia era mesmo pessimista — ou se éramos nós que esperávamos demais.

É verdade, também, que Trump não parou a globalização (a Europa assinou um novo acordo de comércio com o Canadá, com o Japão e tem outro a caminho com o Mercosul). Também não aconteceu aquele tweet de Trump às 3h17 da manhã, abrindo uma guerra tarifária à China e levando a uma forte reacção de Pequim: desvalorizando o yuan, cancelando a venda de aviões e bloqueando a de iPhones. Esse tweet, pelo menos esse descrito pelo Guia, não aconteceu — assim como a América não saiu da NATO ou da ONU, como o Daesh não se expandiu (na verdade, perdeu os seus últimos redutos na Síria), e a Arábia Saudita e o Japão não iniciariam os seus planos para construir bombas nucleares. Ainda não chegámos aí.

Mas o ano virou uma página a meio e trouxe-nos pessimismo que acabou em realismo. Como as dificuldades nas negociações do “Brexit”, por exemplo. Ou quando Kim Jong-un, rebaptizado este ano de “rocket man”, mostrou ao mundo ter armas capazes de atingir a América. Também aconteceu que, para fazer face à ameaça, Trump teve mesmo de reverter a sua estratégia anti-China e visitou-a reforçando um pedido de ajuda a Xi Jinping para lidar com essa ameaça. Assim como se confirmou a previsão de que “o isolacionismo de Trump e a agressividade de Putin” levassem a chanceler Merkel a abrir caminho “a uma força militar europeia” — formalizada precisamente este mês. Ups.

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Ilustração de Mariana Soares

Não lembrava ao diabo

Cansado de tantos obstáculos? Respire fundo, porque o mundo em 2017 ainda nos trouxe mais imprevistos. Há um ano, nenhum analista de uma agência de notícias se lembraria de prever uma quase-ruptura na Catalunha — que só na quinta-feira terá um desfecho. Nesse caso, conte com prolongamento no ano que entra: as sondagens apontam agora para uma vitória do Cidadãos, mas com um bloqueio total no parlamento regional. Adivinhar uma porta de saída não é tarefa para a Bloomberg, é mesmo para alguém que consiga ler as estrelas.

Também ninguém nos avisou dos ataques terroristas um pouco por toda a Europa, de Barcelona a São Petersburgo, passando por três (três) em Londres. Nem para a tensão racial a que assistimos em Charlotsville, EUA, onde uma pessoa morreu e muitas foram filmadas a gritar frases que nos parecem inconcebíveis em pleno século XXI.

Num ano de extremos, também houve o reverso: em Hollywood, primeiro, um grupo de mulheres desafiou um século de silêncios e começou a denunciar os homens que passaram das marcas e que usavam o sexo como arma de poder. O movimento passou fronteiras e acabou na capa da revista Time, com estas mulheres eleitas, justamente, como a personalidade do ano.

Coisas mal resolvidas

E impasses? Houve muitos e ficaram alguns para o ano que vem — com diferentes graus de perigo. Nos EUA, as investigações às interferências russas nas eleições presidenciais ganharam escala, mas não fizeram xeque ao Presidente. Mais abaixo, a Venezuela entrou numa crise financeira e num pico de tensão política. O Brasil driblou entre processos judiciais, à espera de um remate nas imprevisíveis eleições de 2018.

Em África, Angola mudou de mãos e parece ter mudado alguns métodos — mas estamos ainda longe de saber até onde mudará o regime, política e economicamente. Já o Zimbabwe virou a página de um ditador, mas não sabemos se da ditadura. No Médio Oriente, nem a guerra no Iémen parou, nem a tensão estancou entre a Arábia Saudita e o Irão.

É precisamente num impasse que acabamos o ano. Pendurados pela Alemanha, um país pelo qual a Europa espera, mas que pende entre novas eleições, um inédito Governo de minoria ou a extrema-direita como maior partido da oposição. Espantados com a Áustria, onde a extrema-direita subiu ao Governo, com as pastas da diplomacia e da segurança e Defesa. Alarmados com Jerusalém, que os EUA reconheceram como capital de Israel, reabrindo uma tensão que ninguém sabe como acabará.

E nós? Foi “saboroso”?

Por cá, entre nós, teria sido mais fácil se o ano tivesse sido terminado a meio. Até Junho, o país seguiu de euforia em euforia. Na frente económica, em que as sanções ficaram de vez num papel, em que o procedimento por défices excessivos acabou por fim, em que a economia subiu até onde nem Mário Centeno previa — com o desemprego a baixar, o investimento a subir, o turismo a impressionar.

Em Maio atingimos o êxtase: quando o Papa desceu à nossa terra, no muito celebrado centenário de Fátima, e quando o país foi ao céu, festejando a sua primeira vitória na Eurovisão com o amor duplo (e correspondido) de um Salvador.

Depois de Junho veio Julho — e andamos desde aí a fazer um luto. Foi em Pedrógão, e também naqueles concelhos vizinhos, que os incêndios tiraram a vida a 64 pessoas, deitando por terra a ilusão de um Portugal diferente, destapando as feridas escondidas de um tempo de escassez e de abandono do interior. Não foi só essa tragédia, foi a descoordenação no terreno — e o tempo que demorou o Governo a perceber o óbvio.

Foi também depois de Julho que houve um assalto aos Paióis de Tancos, que ainda não nos foi devidamente explicado. Ou que a seca se começou a mostrar, ou que uma árvore caiu no Funchal, sem que tenhamos percebido como ou porquê. Ou que uma avioneta caiu numa praia.

Esse foi o tempo em que a paz acabou também, com a Autoeuropa a perder o diálogo com a sua comissão de trabalhadores, no momento em que mais precisava dele — para produzir um novo modelo. Ou que voltaram as greves, dos professores, médicos, enfermeiros, entre outros funcionários públicos, interrompendo uma tranquilidade social que há muito não se via.

Foi depois por Outubro que o PS esmagou nas autárquicas, enervando o PCP e derrubando o líder do PSD — mais um caminho desconhecido que se abriu para o ano que entra.

Foi também aí, em Outubro, que a tragédia dos incêndios se repetiu, elevando para mais de cem as vítimas mortais desta época de fogos, estendendo até muitas outras áreas do país a área ardida, as casas perdidas, as empresas queimadas, as produções arrasadas.

Foi com isso que ficou suspensa outra paz que durou, a da relação entre o Presidente e o Governo, com o discurso mais duro da era Marcelo. No momento em que o Governo prometia abrir outra era, a de um combate eficaz aos incêndios — outra promessa para o ano que vem.

Pelo meio, voltou a era dos casos. Não foram “raríssimas” as polémicas: das pequenas histórias do Panteão aos mais graves da Legionella, passando pelo Infarmed, pela taxa sobre as renováveis, pelas remodelações.

Epur, si muove. Chegamos ao final do ano com mais um Orçamento de redistribuição, com a economia a crescer (quase tanto como os 3% que Marcelo pedia no início do ano). Também acabamos com o rating da República a subir e com Mário Centeno na liderança do Eurogrupo.

Não podemos dizer que o ano que passou foi “saboroso”, como disse António Costa há dias, numa frase que podia ter saído bem mas que caiu mal. Mas o ano também ficou longe da catástrofe que o guia para pessimistas da Bloomberg anunciava — ou que alguma oposição ao Governo ainda temia. Terá sido, talvez, um ano bipolar. Ou de transição, para aquele que se segue.

Foi um ano em que muitos dos melhores deixaram de estar entre nós, de Mário Soares a Helmut Kohl, passando por Daniel Serrão e Jeanne Moreau. Mas também foi o ano em que sobrevivemos, mais conscientes — não necessariamente mais optimistas.

Chegados aqui, que venha o Guia Pessimista para 2018. Talvez assim cheguemos ao final do ano com alguma coisa de bom para saborear. 

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