Na Cantina Indiana, a aprender que “os pensamentos vêm pela comida”

Cozinha do Gujarat, de filosofia sattvic, com muita cor e muitas especiarias (mas não muito picante). Fomos a um dos melhores restaurantes vegetarianos de Lisboa para uma aula de culinária indiana.

Diz-me o que pensas, dir-te-ei o que comes Alexandra Prado Coelho, Sibila Lind

A Cantina Indiana do Templo Hindu de Lisboa, perto de Telheiras, é considerada um dos melhores restaurantes vegetarianos da cidade – e tem uma das melhores relações qualidade-preço que é possível encontrar na capital.

Para perceber melhor esta cozinha cheia de cor e sabor, fizemos um workshop (especialmente para a Fugas, não acontecem habitualmente) com a professora de culinária indiana e vegetariana Vibhuti Jamnadas e descobrimos que, por trás da escolha dos ingredientes e da forma de os cozinhar e de os comer, está uma filosofia de vida. Aqui ficam dez palavras-chave para a entender.

Gujarat – É do estado indiano do Gujarat, na parte ocidental do país, que são originários muitos dos membros da comunidade indiana em Portugal, e na Cantina Indiana é comida do Gujarat que se serve. A senhora Vibhuti, que, ajudada por Narayan, o cozinheiro da Cantina, orienta este workshop, é gujarati, embora a sua família tenha imigrado para Moçambique, país que foi o seu antes de vir para Portugal, onde nasceram os dois filhos. “A cozinha do Gujarat é muito versátil”, diz. “Nem toda a gente é vegetariana, há a zona da costa, muito ligada ao mar, mas 90% da população é vegetariana.”

Sattvic – Ligada à prática do ioga e da medicina ayurvédica, a dieta sattvic visa excluir da alimentação toda a comida considerada prejudicial para o corpo ou a mente, criando pratos à base de produtos sazonais, fruta, vegetais, leguminosas, proteínas sem origem animal, lacticínios, sementes e frutos secos. Promove também a moderação. “Os pensamentos vêm pela comida, o que comemos é o que pensamos”, diz a senhora Vibhuti.

“Tentamos não comer comida que ficou de um dia para o outro, ter sempre comida fresca”, explica. “E não fazemos os pratos muito picantes”, garante, adiantando que a malagueta verde “pica mas acalma”, enquanto a vermelha deve mesmo ser evitada por quem tem problemas de estômago. Há outros ingredientes não aconselháveis, como a cebola e o alho, que “não são sattvic” e que, tal como a gordura ou o picante, “excitam”.

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Vegetais – São, juntamente com as lentilhas e o arroz, a base da cozinha do Gujarat. Usa-se uma grande variedade de vegetais, muitas vezes misturados com fruta, como é o caso do caril que a senhora Vibhuti nos ensina a fazer e no qual a banana é um dos ingredientes principais (é usada com casca, mas, quando cozinhada, a casca acaba por se desfazer, tal como a da beringela).

Os lacticínios são permitidos nesta cozinha, por isso o doce de cenoura é cozido em leite. “A filosofia indiana é que não se deve matar uma vida, mas para beber leite não é preciso matar a vaca, ela é considerada mãe.” Também o ghee, ou manteiga clarificada (que Vibhuti faz em sua casa), é muito usado nesta gastronomia. “Compro manteiga e clarifico, se usasse manteiga normal [para o arroz basmati com cominhos, por exemplo], ela começaria a queimar, por causa do soro. Assim é gordura pura e não queima.”

Massala – É a mistura das especiarias que se usam para cozinhar. Quando chegamos ao workshop, Vibhuti já as colocou em pequenos recipientes para as ir usando à medida das necessidades. “O açafrão, usamos em quase tudo, é bom para a pele, que fica sem manchas, por isso antigamente as noivas, antes do casamento, faziam máscaras usando açafrão e água de rosas. Os marajás também usavam muito. É bom para os pulmões, usa-se também para estancar o sangue se fizer um corte”, descreve. Depois passa para os outros pratinhos. “O cardamomo é muito calmante, fervido na água… temos aqui cominhos inteiros, cominhos em pó, piri-piri, anis, canela, cravinho, noz moscada. A massala é a mistura de tudo isto.”

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Cor – Esta é uma comida que tem muita cor. Começamos logo pelo lassi de manga – lassi é uma bebida feita à base de iogurte, que pode ser mais líquida e salgada, ou mais espessa e com polpa de fruta, em geral manga (a polpa de manga fresca, chamada keri no ras, é muito popular no Gujarat, sobretudo no Verão, quando as mangas estão maduras). A bebida (que leva também água fria, cardamomo em pó, uma pitada de açafrão, açúcar e gelo) pode acompanhar a refeição (embora seja quase uma refeição) ou pode ser tomada fora dela. Também o doce de cenoura é, naturalmente, colorido. E o caril de legumes, que junta beringela, pimento verde, pimento vermelho, banana e ainda coentros em cima, é igualmente uma festa para os olhos.

Proteína – Não existindo carne nem peixe, a proteína nesta cozinha provém sobretudo das lentilhas, do feijão ou do grão. As lentilhas (que têm um teor de proteína bastante superior ao de outras leguminosas) existem em grande variedade na Índia, e Vibhuti apresenta várias, de diferentes cores, dispostas em pratinhos à nossa frente. Um dos pratos que nos ensina a fazer é com lentilha de Mung, que começa por ser cozida em bastante água com gengibre, kurmuka, sal e malagueta. Quando estiver cozida, é altura de fazer o tarka: coloca-se ghee e cominhos num tacho, quando estes estiveram alourados adiciona-se o piri-piri em pó e deita-se sobre as lentilhas. Serve-se quente com arroz e decora-se com coentros e tiras de gengibre fresco.

Pão – Há muitos tipos de pão na cozinha indiana. O que aprendemos a fazer neste workshop é o paratha, depois usado para acompanhar as lentilhas e o caril, substituindo, se o desejarmos, os talheres. É um pão de farinha integral, que leva também uma colher de chá de cominhos. No final, é colocado sobre o bico do fogão a gás e incha como um balão, antes de esvaziar outra vez e ficar pronto a comer.

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Arroz – A receita aqui é a de arroz com cominhos e não pode ser mais simples: aquece-se o ghee no tacho, adiciona-se os cominhos e depois o arroz, mexe-se um a dois minutos, adiciona-se sal e água a ferver de forma a tapar o arroz. Deixa-se cozer até a água evaporar. Mas, explica a senhora Vibhuti, na Índia não se utiliza apenas o arroz basmati. Um dos pratos mais famosos é o kicheree, feito com arroz e lentilhas e que é dado às crianças pequenas quando elas começam a comer.

Doce – “Doce não é para todos os dias, só uma vez por semana”, avisa Vibhuti Jamnadas. No workshop ensina-nos a fazer doce de cenoura (cenoura ralada, uma colher de ghee, açúcar e leite, sendo que para um quilo de cenoura usa-se um litro de leite), que não é demasiado doce e que fica muito bem quando se come juntamente com o resto dos pratos: o arroz, o caril, as lentilhas.

Respeito – Toda a filosofia da Cantina Indiana assenta no respeito – pelo que comemos e pelos outros. Por isso, apesar de ser um buffet, somos aconselhados a não nos servirmos mais do que o que conseguimos comer. “Podem servir-se as vezes que quiserem”, sublinha Vihbuti, mas é importante não desperdiçar comida.

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Além disso, todos os dias, ao final da manhã, o padre desce do templo para vir buscar um tabuleiro com comida para “oferecer a deus”. Quando vê o padre aproximar-se, Vibhuti dispõe tudo nos vários pratinhos, preocupando-se em que fique bonito. “Os olhos comem primeiro, não é?”.

Apesar de o nosso workshop ter sido organizado a uma segunda-feira, dia de encerramento da Cantina, aparecem alguns clientes que não sabiam que o espaço estava fechado. “Não faz mal, podem ficar para comer, chega para todos”, convida Vibhuti. “Quando temos comida, devemos partilhá-la”. É este o espírito da Cantina Indiana.

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