Jogo em Macau volta a crescer após três anos de quedas

As receitas dos casinos recuperaram e estão a subir quase 20% este ano, passando os 25.000 milhões de euros. Com o ataque à corrupção pelo meio, já se pensa na renovação das concessões

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Jogo nos casinos gerou 23.287 milhões de euros no ano passado Reuters/Bobby Yip
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Autoridades querem uma maior diversificação da economia Reuters/Bobby Yip
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Após a liberalização, em 2002, entraram novos operadores, com investimenntos como o do Parisien da Venetian/Sands China Reuters/Bobby Yip
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Mesmo ao lado de Macau, em Hengqin, está a nascer toda uma nova cidade Reuters/Bobby Yip

Com um rosto inexpressivo, o croupier retira as fichas e faz um movimento amplo que abrange a área da mesa do jogo de bacará. Perdeu o apostador, que se levanta para tentar a sorte noutro lado – talvez noutra mesa --, ganhou a casa. Novo movimento surge, mecânico e quase idêntico ao anterior, desta vez a sinalizar, com um convite ou um desafio, que está aberto a novas apostas. Aliás, nunca deixa de estar.

Aqui, no Casino Lisboa, no centro de Macau, ou em qualquer outro dos 40 casinos que existem actualmente nesta região administrativa especial, pode jogar-se sete dias por semana, a qualquer hora.

Dentro dos casinos, onde se perde facilmente a noção do dia e da noite, sem janelas para o exterior, o tempo parece medir-se mais pelas fichas gastas ou ganhas do que pelas horas e minutos. Sem dinheiro, a jornada chega mais depressa ao fim. Com dinheiro extra na mão, a tentação é ver até onde calha a sorte.

A casa sai sempre a ganhar, isso é certo, mas há que repartir uma parte das receitas com alguns jogadores e manter a imagem de vitória pessoal sobre as probabilidades, com ganhos imediatos.

Maior zona de jogo no mundo, acima mesmo de Las Vegas, a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) movimentou qualquer coisa como 223.210 milhões de patacas (23.287 milhões de euros, ao câmbio actual) em apostas no ano passado. E este foi um mau ano, com as receitas brutas a descerem 3,3% face a 2015, e a caírem pelo terceiro ano consecutivo.

Agora, a maré parece ter virado, com o valor a subir 19,5% nos primeiros onze meses deste ano. Ao todo, com base nos dados da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) que acaba de divulgar as receitas de Novembro, as apostas chegaram aos 25.381 milhões de euros em onze meses, superando assim o ano inteiro de 2015.

O efeito do combate à corrupção

O pico deu-se em 2013, ano em as receitas dos casinos chegaram aos 37.647 mil milhões de euros (qualquer coisa como 1/5 do PIB de Portugal). Foi o resultado da liberalização do jogo efectuada em 2002, com Stanley Ho, através da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM), a perder o monopólio que detinha até então. Esta foi, aliás, uma das primeiras medidas do novo Governo após a passagem do controlo da RAEM de Portugal para a China, em 1999.

Sendo o jogo proibido no resto do território continental, e atraídos pelas luzes dos novos casinos, muitos chineses passaram a viajar para Macau de modo a tentar a sua sorte, o que por vezes implica dinheiro obtido de forma ilegal.

Foi precisamente em 2013 que Xi Jinping chegou ao poder, sucedendo a Hu Jintao e prometendo combater a corrupção em todos os níveis do Governo (desde os “tigres” até às “moscas”), ao mesmo tempo que se instituía um maior controlo na saída de capitais.

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Com a promessa veio a acção, e milhares de responsáveis, incluindo figuras de topo, foram apanhados e acusados de corrupção. Inevitavelmente, o ambiente mudou, e as mesas de jogo de Macau ressentiram-se, com as receitas brutas dos casinos a cairem 34% em 2015, para 24 mil milhões de euros. Agora, e conforme atesta a mais recente edição da revista Macau Business, o número de casos de corrupção abrandou, e uma maior descontracção tem empurrado as receitas dos casinos para cima.

Ao mesmo tempo, verifica-se também uma melhoria do clima económico, e há um incremento do jogo massificado (por oposto ao das salas VIP), organizado em excursões.

Junte-se aqui ainda duas outras possíveis explicações: maior aperto ao branqueamento de capitais nas Filipinas -- zona de jogo concorrente --, e a criação de novas formas de escapar ao controlo de capitais imposto aos cidadãos chineses.

O fenómeno dos angariadores

A iniciativa de combate à corrupção teve também resultados no número de promotores de jogo, que chegaram a ser 235 em 2013, entre empresas e indivíduos, e que este ano se ficaram pelos 126. Esta é uma realidade específica de Macau, com os promotores, cujo licenciamento tem de ser renovado todos os anos, a funcionar como pilar das receitas dos casinos enquanto angariadores de apostadores VIP.

Há mesmo uma fórmula inscrita na região que atesta a sua importância: 40%+40%+20%, em que, do valor da receita bruta gerada pelo apostador VIP, 40% vão para o Estado na forma de imposto, outros 40% vão para o promotor de jogo (conhecido em inglês como “junket”) e os restantes 20% entram nos cofres do casino.

O fenómeno ganha toda uma outra dimensão quando se percebe que cerca de 57% do total das receitas têm por base as apostas VIP, ligadas ao bacará, jogo introduzido em Macau em 1937 e que se transformou num verdadeiro fenómeno. 

Ao promotor de jogo compete seleccionar os jogadores – maioritariamente chineses--, organizar a viagem e a estadia com mais ou menos luxo, e emprestar o dinheiro a apostar (o que qual irá logicamente cobrar quando este for perdido, e não é através dos tribunais em caso de falha de pagamento).

Quanto melhor se conhecer o convidado VIP, menor o risco de problemas nas cobranças, já que maior parte destas apostas são a crédito. Este é o tipo de jogadores, e de dinheiro, que não estão visíveis. Existem salas reservadas, à porta fechada e com um rigoroso direito de admissão, controladas pelos promotores em articulação com os casinos, prontas a aceitar apostas de dezenas de milhares de euros.

O controlo das apostas e consequente acerto de contas é feito através do uso de “fichas mortas”, que só são aceites na sala escolhida para o efeito, e que se podem depois trocar por fichas de jogo normais.

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Depois, há uma outra partilha de ganhos: o promotor, conforme explicou ao PÚBLICO uma pessoa ligada ao sector que solicitou o anonimato, fica obrigado a gastar no local parte do que arrecada, seja numa das lojas de luxo do complexo hotel-casino, seja através da reserva de quartos que podem nem chegar a ser ocupados.

E, se a redução do número de promotores mostra uma maior preocupação no controlo desta actividade e das suas contas, esta não deixa de ser vista com uma actividade opaca, com ramificações junto das tríades.

Jogo dividido

O jogo em Macau tem outras peculiaridades, como é o caso dos “casinos-satélite”, que de forma muito simplificada podem ser comparados a promotores de jogo mas a uma maior escala. Os seus organizadores não têm concessões de jogo, mas ficam responsáveis pelo espaço, que está em nome do concessionário (em inglês, o termo é “third party promoted”, conforme explicita a SJM).

Actualmente, a Sociedade de Jogos de Macau (SJM, subsidiária da STDM) detém 22 casinos espalhados por Macau, o que representa mais de metade do total. Muitos deles, no entanto, não são de facto controlados pelo grupo de Stanley Ho, mas sim por terceiros como Chan Meng Kam, ligado ao mundo da política (ex-deputado) e dos negócios. É dele o mais recente, baptizado de Casino Royal Dragon, e inaugurado em Setembro num processo com algumas peripécias ligadas à autorização para abrir as portas.  

Depois, há ainda uma herança do processo de liberalização de 2012: o concurso público atraiu então 21 interessados, incluindo o próprio grupo de Stanley Ho e vários operadores dos EUA. No final, houve três licenças, a que se somaram depois mais três subconcessionários, cada um deles com ligações aos vencedores, num processo algo peculiar de vínculos e concorrência, com os inevitáveis pagamentos pelo meio.

Assim, a SJM ficou ligada à MGM, a Galaxy à Venetian, e a Wynn à Melco. Com a saída de cena de Stanley Ho, que se encontra incapacitado na sequência de um acidente vascular cerebral em 2009, é a sua quarta mulher, Ângela Leong, quem lidera o grupo, com apoio de Ambrose So Shu Fai, presidente executivo da SJM.  

À frente da MGM em Macau está uma filha de Stanley Ho, Pansy Ho, e outro filho, Lawrence Ho, lidera a Melco. No caso de Pansy, a filha do “rei de Macau” surge também, além de Ambrose So, nos negócios do jogo que Stanley Ho ainda detém em Portugal, como o Casino do Estoril, Casino de Lisboa e Casino da Póvoa.

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Jogo explodiu em Macau a partir da liberalização, em 2002, que trouxe novos operadores Reuters/Bobby Yip

Ao ritmo do néon

Com a liberalização, e os novos grupos, deu-se então um boom na oferta, com fortes repercussões na procura. Foram construídos enormes complexos, casinos-hotéis, que fazem do antigo Casino Lisboa, com o seu tapete roxo e dragões amarelos, um espaço algo intimista e acolhedor.

Na zona de Cotai, espaço ganho ao mar entre as ilhas de Taipa e Coloane, unidades como o Galaxy, o Venetian – composto por 490 andares -- ou o Parisian – com a inevitável torre Eiffel -- competem entre si pelo título de casino mais avassalador, e barroco, disputa que se acentua durante a noite com o impulso ritmado das luzes de néon.

No interior do Galaxy, as zonas de jogo são preenchidas essencialmente por chineses, mais interessados nas mesas de bacará do que propriamente nas máquinas, conhecidas por “tigres esfomeados” (aliás, entre 2012 e meados deste ano verificou-se uma descida no número de máquinas, dando assim espaço a mais mesas), num cenário que se prolonga por centenas de metros.

À entrada, os apostadores são recebidos por um enorme escultura de um diamante que se ergue, com os seus três metros, entre plumas de pavão e no meio de uma cascata de água. Os vídeos e as selfies multiplicam-se entre os visitantes, com o “diamante da fortuna” a simbolizar “prosperidade e boa sorte” aos que ali vão largar o seu dinheiro.

De olhos postos no futuro

Actualmente, Macau é o segundo maior destino de turismo dos chineses (após Hong-Kong), tendo estes constituído a esmagadora maioria dos perto de 30 milhões de visitantes que se deslocam a este território com cerca de 31 km quadrados. A duração média não chega a dois dias, num “toca e foge” acompanhado de carros de luxo e de muitos autocarros.

Apesar da recuperação que se está verificar em Macau, o nível das receitas de jogo de 38 mil milhões de euros que se verificou em 2013 é algo distante. E vai havendo avisos. Logo em Dezembro de 2014, na sua visita oficial a Macau, Xi Jinping afirmou que a região tinha de acelerar a sua diversificação de receitas. Por parte do Governo, o objectivo é transformar a região “num centro comercial de turismo e lazer”.

Aposta-se em grandes feiras e congressos internacionais, apresentando-se Macau, sublinha o Governo local, como “um destino de compras, de gastronomia e de entretenimento de famílias”. A marca histórica de Portugal ajuda ao factor diferenciação, entre monumentos históricos e o legado dos pastéis de nata, verdadeiro ex-líbris local.

Dentro de pouco tempo deverá ser inaugurada, após uma expressiva derrapagem financeira, a ponte com mais de 20 km que vai ligar Macau e Zhuhai a Hong-Kong, encurtando a distâncias. Ali ao lado, em Hengqin (ligada a Macau pela ponte Flor de Lótus), está a nascer toda uma nova cidade, com arranha-céus, que se apresenta como complemento a uma região onde o espaço é o bem mais escasso (fazendo disparar os preços do imobiliário).

É neste quadro, e sempre com o jogo a funcionar como o seu coração, que Macau se prepara para o futuro. Ao mesmo tempo que se temem as consequências da morte de Stanley Ho (teve quatro mulheres e 16 filhos) e o que isso implicará no império, disputado por vários interesses, já se fala da questão da renovação (ou não) das concessões e subconcessões.

À partida, o actual executivo, cujo mandato termina no final de 2019, só se irá pronunciar sobre a concessão da SJM, à qual está ligada a subconcessão da MGM. Estas acabam em Março de 2020, e o mais provável é que seja dada uma prorrogação por dois anos. Assim, estas duas alinhariam com o resto do sector, cujas concessões em vigor terminam em 2022.

Será por volta dessa altura que se saberá se a ideia é a de avançar com uma prorrogação excepcional a todos por mais cinco anos (ficando a decisão a meio do mandato do executivo) ou se há todo um novo processo.

Seja qual for a opção, há coisas que não vão mudar: uma delas é a de que o jogo se manterá como centro de todo o que se passa em Macau, outra é a que a casa vai continuar a ganhar. Algo que está bem ilustrado no clássico Casino Lisboa, cujo edifício da década de 70 se assemelha a uma espécie de gaiola da qual as pessoas entram e saem livremente mas cujo dinheiro fica retido pelo meio.

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