O século XX português podia chamar-se António Variações

Comunicações, performances e um concerto. Em Coimbra, a vida e a obra do cantor que foi uma das figurações mais exuberantes do Portugal contemporâneo é ponto de partida para nos pensarmos hoje, no colóquio Variações Sobre António.

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António Variações morreu em 1984, aos 39 anos DR

Ainda há dias, com a morte de Zé Pedro dos Xutos & Pontapés, se pôde constatar que a música está fortemente inscrita na vida das pessoas, naquilo que desejam, naquilo a que aspiram. Em momentos rituais como a morte, confrontamo-nos com essa certeza: a música popular é indissociável do que somos, lugar de confronto de ideias, de atribuição de identidades ou de inscrição em movimentos sociopolíticos. E no entanto, paradoxalmente, nem sempre é levada a sério, sendo encarada como uma mera actividade mundana.

Estas quinta e sexta-feira, em Coimbra, haverá um colóquio à volta do cantor António Variações. Em inúmeros países, seria um facto normal. Aqui ainda é um acontecimento algo inusitado. “Poderíamos pensar a transição do Portugal da ditadura para o Portugal Europeu a partir, por exemplo, de figuras como Otelo ou Salgado Zenha, mas isso é o habitual, por isso pareceu-me que seria mais aliciante fazê-lo a partir de António Variações”, diz-nos Osvaldo Silvestre, docente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra na área dos Estudos Literários e responsável pelo colóquio que é também evento, já que o programa inclui performances e um concerto.

“Abordar o Variações a partir de uma perspectiva multidisciplinar é o desafio”, afirma Silvestre, para quem o cantor “nos ajuda a fazer um corte transversal não apenas na música, mas também na cultura e na sociedade portuguesa, da transição da ditadura para a democracia e depois para a Europa”. E dá o exemplo da canção Olhei para trás, que conta a “história do tipo que vem da aldeia para a cidade, com uma mala de cartão, e traz o livro de orações e uma carta de recomendação": "É o percurso de toda uma geração em Portugal.” É como se o trajecto dele se confundisse, reinventando-o, com o do homem português da segunda metade do século XX, da aldeia até Lisboa, à Guerra Colonial e à emigração, e ao desejo de mundo, expresso também na frase dita ao produtor do primeiro disco, quando enunciou que o lugar estético da sua música era “uma coisa entre Braga e Nova Iorque”.

“Há muitos ângulos para olhar para ele”, assume o coordenador do colóquio. “Há letras incríveis como a canção que foi editada postumamente A minha cara sem fronteiras, onde ele diz coisas que parecem Deleuze. Uma pessoa ouve aquilo e fica perplexa com a forte revindicação de cosmopolitismo que acarreta. ‘A minha língua não tem país / O meu corpo é um tronco sem raiz’, canta ele: é uma imagem que me persegue.”

Ainda assim, a sua comunicação não irá por aí. “A minha questão será outra, interrogando em que narrativa da música portuguesa se encaixa. Não encaixa na narrativa da música popular ou tradicional. Nem na do pop e do rock. Ou na do fado, apesar da devoção à Amália. O Vítor Rua, que gravou com ele, diz que era alguém fora de contexto. Ao mesmo tempo, é alguém com contexto a mais. Ou seja, o Variações acabou por fazer o que os grandes criadores fazem: criam um contexto que não existia antes.”

Plural e antinómico

Quem também encontra em Variações inúmeros elementos para pensar a identidade cultural como um processo plural e antinómico é a socióloga Paula Guerra. “O local em relação com o global, ‘entre Braga e Nova Iorque’, o hibridismo, o cosmopolitismo, a abertura ao mundo num contexto fechado, a sexualidade, a moda, o do-it-yourself, a forma como ele lidou com essas questões e as transpôs para o espaço visível da indústria cultural, tudo isso está presente nele”, afirma, adiantando que algumas dessas questões farão parte da sua comunicação, onde analisará um conjunto de letras representativas das identidades múltiplas que trespassam a contemporaneidade portuguesa desde os anos 80 até hoje.  

Mas haverá muitas outras conferências, para além de uma mesa-redonda com moderação do jornalista Nuno Galopim, abordando temas tão diversos como a contextualização da produção visual, performativa e musical de Variações, a análise da cobertura mediática da sua morte e da sua influência na música actual, as relações com a obra fílmica de João Pedro Rodrigues, a sua “performatividade queer” ou o papel do Bairro Alto, enquanto epicentro da revolução cultural dos anos 80, na sua construção identitária.  

Para além das conferências, haverá performances (António Olaio, Nuno Meireles ou Margarida Correia), que decorrem esta quinta-feira na Sala do Carvão e na Casa das Artes, e um concerto, sexta-feira, no Teatro Académico de Gil Vicente, com músicos como Pedro Chau (Parkinsons, Ghost Hunt), Victor Torpedo (Parkinsons) ou Carlos Mendes (Bunnyranch). No centro de tudo, o minhoto António Joaquim Rodrigues Ribeiro, mais conhecido por António Variações, nascido em 1944, inspirador de Os Humanos, transcendendo gerações com apenas dois álbuns (Anjo da Guarda, de 1983, e Dar & Receber, de 1984), talvez a primeira estrela pop portuguesa do Portugal contemporâneo a morrer. Foi em 1984.

“Em momentos rituais como esses as pessoas sentem que também perdem um bocado delas”, reflecte Paula Guerra, “mas depois há alguma incapacidade em lidarmos com a música popular, como se existisse uma desvalorização da importância que ela tem nas nossas vidas, aos mais diversos níveis. Na academia, na forma como as elites ou os líderes de opinião fomentam a cultura, ou nas escolas, existe a reprodução dessa conduta, o que é perturbador, porque esta é uma das formas de nos decifrarmos culturalmente enquanto sociedade.” Compreender António Variações é perceber um pouco melhor o Portugal contemporâneo.

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