Partidos têm dado pouca relevância à ética

Acusações ao ex-primeiro-ministro podem ser uma oportunidade para afirmar novos critérios de vigilância e apertar as malhas das incompatibilidades.

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“Hoje, o cidadão é mais exigente” no escrutínio dos poderes públicos, diz o politólogo Carlos Jalali Enric Vives-Rubio (arquivo)

O despacho de acusação da Operação Marquês levanta interrogações sobre a prevenção da sociedade à forma como os representantes eleitos pelo povo exercem as suas funções. Não é só o escrutínio das suas acções que está em causa. Em jogo está a forma e existência, ou não, de filtros no recrutamento partidário. Três especialistas analisam a questão e apontam caminhos.

“Os partidos têm dado pouco relevância à ética”, considera Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS), doutorado por Florença com uma tese sobre políticas públicas de combate à corrupção e antigo presidente da TIAC – Transparência e Integridade, Associação Cívica. “Os partidos falam de ética mas não a praticam nem têm trabalhado nos mecanismos de controlo, apesar de terem um melhor processo de selecção e comissões jurisdicionais”, comenta.

“Na política, devemos falar de uma ética pública que é um ponto de encontro entre as normas mais gerais e as obrigações do cidadão”, pontualiza Viriato Soromenho-Marques, catedrático de Filosofia Social e Política e de História das Ideias na Europa Contemporânea da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Deste modo, Soromenho-Marques baliza a questão: “A ética pública insere-se na capacidade de verificar se os titulares de cargos públicos cumprem os seus deveres e exercem os seus poderes, pois a omissão do poder pode ser tão trágica como o abuso do poder.”

Carlos Jalali, doutorado por Oxford e professor de Ciência Política na Universidade de Aveiro, insiste na responsabilidade dos partidos. “Os próprios partidos políticos têm de ter mecanismos de filtragem no acesso que permita que cheguem ao topo pessoas com ética”, refere.

“A partir do século XIX há uma mudança de atitude no mundo ocidental, a política com Auguste Comte passou a ser encarada como uma espécie de física que tinha pouco a ver com a ética, com um comportamento prudencial dos actores políticos”, recorda Soromenho-Marques. A combinação do positivismo com o determinismo histórico marxista, afirma o catedrático, colocou a política na superestrutura, numa foto fixa que viria a ser baralhada pelo desenvolvimento económico. “A visão da política passa a não ser crítica, abrandou a vigilância sobre os decisores e uma análise política que põe fora o factor humano não é séria”, enumera. “Passámos de uma legitimação constitucional, do bom comportamento constitucional e ético dos dirigentes, a uma legitimação dos resultados das políticas económicas”, sintetiza.

Período de nojo insuficiente

Uma dessas políticas, em crescendo de afirmação num tempo de crise, é a diplomacia económica. “É uma área muito porosa, na qual interagem interesses públicos e privados, pode haver promiscuidade e há a possibilidade de se obterem rendas mediando os interesses das empresas com as autoridades dos países de acolhimento, o decisor político pode então passar à qualidade de broker, obtendo comissões ilícitas ”, observa Luís de Sousa. “Estes riscos devem ser mitigados pela forma como são estruturadas as missões da diplomacia económica com a chancela do primeiro-ministro ou do Presidente da República”, recomenda o investigador do ICS.

“A diplomacia económica tem ganho relevância nas acções do Governo, na afirmação externa das empresas portuguesas, que é algo que a cidadania reclama, mas há fronteiras muito ténues entre políticas a favor do país e a favor de interesses particulares ou de grupos”, admite Carlos Jalali. “Se o governante X faz acções a favor do grupo Y, dizendo que é a favor do interesse nacional, pode haver a sua captura que leva a favorecer o grupo Y e não o grupo Z”, alerta.

“Por que é que as empresas recrutam ex-governantes?”, interroga o professor da Universidade de Aveiro. “Um factor é porque esses ex-governantes são presumivelmente competentes e chegaram ao poder através de vários filtros, mas há também o seu conhecimento dos interlocutores e mecanismos das decisões políticas internas e externas que lhes permite facilidade de contactos”, argumenta. É o encadeado de competência, conhecimento e rede. “Os cidadãos não avaliam muito a competência, observam essa contratação pelo conhecimento e pela rede, o que reforça a narrativa da suspeita quando a predisposição da cidadania já é a suspeita”, assinala Jalali.

“A esfera pública tende mais para os rituais, perdemos a capacidade de escrutinar os nossos representantes, os que vão para a esfera pública vão, certamente, com as melhores intenções, mas vão-se sentir mais livres, menos vigiados, e a possibilidade de abusos de poder começa a ser maior”, enuncia Viriato Soromenho-Marques. “Na esfera privada há grandes grupos de poder económico que capturam os nossos representantes, que os passam a servir”, descreve.

“Temos uma prática de recrutamento de ministros que vêm do sector privado e que são convidados pela competência profissional e conhecimento do sector”, recorda Luís de Sousa: “Se a conflitualidade de interesses não existe no momento do recrutamento, porque tem de existir depois?”, questiona. Para o antigo presidente da TIAC, os mecanismos de dissuasão existentes não são suficientes. “O período de nojo de três anos para os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos para empresas de um sector por ele tuteladas não é suficiente na duração nem na forma”, assinala. “Há decisões tomadas e que afectaram um determinado sector económico que se prolongam no tempo, como as PPP [Parcerias Público-Privadas], algumas das quais até 20 anos”, explica. “O impedimento ou período de nojo só se verifica, apenas, nas privatizações, nos casos em que tenham sido beneficiárias de incentivo financeiro ou fiscal contratualizado, o que é insuficiente”, refere.

Do exterior vêm exemplos de outro modus operandi. “No Reino Unido há alguma fiscalização post-employment, uma verificação a posteriori do trajecto profissional dos cargos políticos”, invoca o investigador do ICS. “Na Europa, as comissões de ética criadas no âmbito parlamentar deviam controlar estas questões e terem um papel com recriminações públicas”, assegura. Contudo, há dificuldades: “Os grandes partidos não enveredam por este caminho, quem levanta estas questões são os partidos-tribuna, minoritários, as associações da sociedade civil e os líderes de opinião.”

“O PS falhou”

Mais comuns são as vias seguidas na fiscalização. “Basicamente é criar obstáculos, em todos os países tem-se seguido por duas linhas”, explica Luís de Sousa. “Períodos de nojo à saída do Governo, a que há também de ponderar períodos de nojo à entrada, tal como para os reguladores”, destaca. “A segunda linha é que não basta o impedimento, tem de haver um organismo com legitimidade política que faça a monitorização destas situações e as divulgue, como acontece com a nomeação dos comissários europeus que são escrutinados pelo Parlamento Europeu”, recomenda. “O mesmo devia existir em relação aos ministros e secretários de Estado de cada país”, insiste.

“Hoje em dia, a venalidade dos representantes é uma doença inserida na prática do sistema democrático, é o seu calcanhar de Aquiles”, observa Viriato Soromenho-Marques. “A necessidade de vigilância está na génese do sistema democrático no domínio constitucional, através da separação clara de poderes e a criação de mecanismos de interacção, transformando o corpo legislativo num tribunal como acontece nos Estados Unidos, que leva à remoção de uma pessoa do seu cargo político através de um processo político”, analisa. De que o expoente máximo é o impeachment.

Da Operação Marquês, o catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa anota vários falhanços no crivo democrático. “O Parlamento tem de criar uma comissão de análise do curriculum dos deputados, é uma questão de segurança dos cidadãos que, quando votam em alguém, votam, por definição, numa pessoa de bem”, anota.

“A Constituição dá aos partidos o monopólio de representação para o Parlamento. O PS falhou redondamente, não foi capaz de analisar o perfil e a informação objectiva de quem foi seu secretário-geral e candidato à direcção do Governo”, prossegue Soromenho-Marques. “Falhou quem com ele colaborou, há um colapso moral perante uma personalidade dominante”, sustenta. “Houve, também, um desarme da sociedade pela forma como a elite económica colaborou no bloco central dos interesses”, sublinha. “Quando as instituições funcionam no espirito constitucional, com o Parlamento a funcionar rigorosamente, não consideram que quem foi eleito está à margem do escrutínio”, repara.

Contudo, Viriato Soromenho-Marques refere que há um antes e depois das acusações ao ex-primeiro-ministro. “O grau de visibilidade deste assunto deixa-nos numa situação de alarme e prevenção, não é uma garantia mas uma oportunidade”, assegura. “Isto não pode ser esquecido, é o espelho da nossa sociedade”, sentencia.

“Hoje, o cidadão é mais exigente”, corrobora Carlos Jalali. “Temos uma opinião pública mais qualificada na forma como interpreta estas situações, há sinais de mais exigência da sociedade civil, de menos âncora nos partidos políticos, para colocar estas questões na agenda política”, conclui.

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