Duas pontes rivais no Guadiana lembram as guerras entre vizinhos

D. Manuel I manda construir, em 1510, uma ponte em Elvas por recear a “reintegração” de Olivença em Castela. No ano seguinte, iniciam-se obras numa estrutura igual em Badajoz para travar o “expansionismo” luso.

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A ponte de Badajoz sobreviveu e hoje é uma estrutura que liga as duas margens do Guadiana Rui Gaudêncio
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A Ponte da Ajuda foi destruída de forma irreversível Rui Gaudêncio
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Rui Gaudêncio

O contencioso que alimenta desde a assinatura do Tratado de Alcanizes, em 1297, a demarcação da fronteira luso-espanhola entre a foz do rio Caia e a Ribeira dos Cuncos, no Alto Alentejo, tem uma das suas referências maior nas duas pontes construídas durante o primeiro quartel do século XVI sobre o rio Guadiana e distanciadas, entre si, apenas 24 quilómetros. São dois gigantes rivais. A espanhola sobreviveu, a portuguesa é hoje uma ruína.

A história regista como foram persistentes as disputas territoriais e político-militares ao longo do médio Guadiana na linha da fronteira acordada entre os reis de Portugal e de Castela e plasmada no Tratado de Alcanizes. A instabilidade que marcava aquela zona da raia tornara imperioso para a coroa portuguesa a existência de uma ligação que garantisse o apoio logístico a Olivença, antecipando uma possível intervenção castelhana.

Com efeito, Afonso XI de Castela decidiu promover, entre 1325 e 1350, a construção de uma ponte sobre o Guadiana, em Badajoz, uma decisão que Lisboa viu como uma ameaça à soberania portuguesa naquele troço fronteiriço, pelo que decidiu reforçar a defesa de Olivença. O historiador e cronista de oliventino, Luis Alfonso Limpo, explicou ao PÚBLICO as razões dessa decisão: Logo que Portugal passou a ocupar uma faixa de território na margem esquerda dos rios Guadiana e Caia, que implicou a anexação de Olivença e Campo Maior, “ficaram duas espinhas cravadas nos flancos de Badajoz”. O rei de Castela terá sentido “necessidade que as suas tropas pudessem operar livremente em toda a margem direita do Guadiana” para travar o “expansão” da fronteira portuguesa no interior da actual Extremadura espanhola. É neste contexto que surge a primeira ponte de Badajoz, numa “resposta estratégica” de Afonso XI de Castela às intervenções das tropas portuguesas na margem esquerda do Guadiana durante os reinados de D. Dinis e de D. Afonso IV, explica Alfonso Limpo. 

À iniciativa do rei de Castela reage D. Pedro I de Portugal, avançando em 1360 para a construção da primeira ponte da Ajuda. Confirmava-se a necessidade de assegurar a logística em Olivença, povoação que se encontrava isolada no interior do território castelhano e que impunha a transposição do rio Guadiana.  No entanto, o aparecimento de “crises de todo o tipo, incluindo a peste negra, tinham-se abatido sobre a Península Ibérica durante a segunda metade do século XIV e quase todo o século XV e obrigaram à paragem das obras na ponte de Badajoz após a morte de Afonso XI, em 1350. Em 1367, é interrompida a construção da primeira ponte da Ajuda com a morte do rei D. Pedro. Ficaram então as duas pontes inacabadas, uma ao lado da outra. Era rei de Portugal D. Manuel I.

Em 1498, o soberano português viaja para Toledo e Zaragoza para ser jurado herdeiro de Castela e Aragão. Durante a viagem, inspirou-se nas pontes fortaleza que observou em território espanhol, especialmente a que fora construída sobre o Tejo, em Toledo, e decide retomar o trabalho iniciado por D. Pedro I, na ponte da Ajuda. E, em 1510, ordena o arranque de uma imponente obra de engenharia militar: a construção de uma ponte-fortaleza com 390 metros de extensão, apoiada sobre 19 arcos, com 5 metros de largura e 15 metros de altura, num importante ponto estratégico de passagem do rio Guadiana que ligaria Elvas a Olivença. A estrutura estava defendida por um sólido torreão erguido no centro da ponte, assente em penedos de grande dimensão situados no leito do rio.

Alfonso Limpo explica que a opção por uma estrutura fortificada “foi estratégica”. E recorrendo à ironia, frisa que “não se constrói uma ponte com 19 arcos, com galerias por debaixo do tabuleiro, uma torre de três andares, com uma extraordinária espessura de parede apenas para intimidar os mais relutantes a pagar a portagem ou para que as sardinhas de Setúbal chegassem mais frescas a Olivença”.

O sentido bélico da solução encontrada por D. Manuel I patenteava a rivalidade que mantinha com o rei D. Fernando II de Aragão e que justificou de imediato uma reacção à altura. Um ano depois do arranque das obras na ponte da Ajuda, em 1511, inicia-se, em Badajoz, a construção da ponte de Palmas, a uma distância de 24 quilómetros da sua congénere portuguesa. 

Os números expressam a dimensão do antagonismo: “Diante da [ponte da] Ajuda com 19 arcos, construiu-se Palmas com 32. Confrontados com uma extensão de 390 metros, a ponte de Badajoz fica com 582 metros”, descreve o historiador oliventino. Se na ponte da Ajuda a torre defensiva foi erguida no centro do seu tabuleiro, na de Palmas ficou localizada na margem esquerda do Guadiana, para formar o ponto melhor defendido de Badajoz.

A construção das duas pontes, em simultâneo, e numa fase de transição entre a Idade Medieval e a Idade Moderna, esteve marcada por “um percurso vertiginoso para os meios e os usos da época e em contexto de verdadeira guerra fria”, salienta Alfonso Limpo. A ponte da Ajuda ficou concluída em 1520 e a de Palmas em 1526.

“Quanta emulação e luta custaram aos cofres das coroas ibéricas esses dois gigantes de pedra, cronologicamente gémeos, nascidos não só ao lado um do outro, mas também um contra o outro”, questiona o historiador oliventino, acrescentando que a ponte da Ajuda “não é a única causa da construção de Palmas, mas a gota que fez transbordar a paciência espanhola”.

O que acabou por as diferenciar foi o percurso histórico das duas pontes do Guadiana na Idade Moderna. “A de Badajoz sobreviveu” e hoje é uma estrutura que liga as duas margens do Guadiana. A ponte da Ajuda “foi destruída de forma irreversível” no decurso das operações que se seguiram à batalha de la Gudiña, em 1709, no contexto da Guerra da Sucessão espanhola, conclui Alfonso Limpo, que tem dedicado o seu percurso académico à investigação e interpretação da história de Olivença incluindo a ponte da Ajuda, sobre a qual já elaborou uma vasta monografia.     

Ponte da Ajuda está esquecida “no limbo político/diplomático”

A maior ponte-fortaleza da Europa, parcialmente destruída pelo exército castelhano com barris de pólvora em 1709, continua a aguardar que as autoridades espanholas procedam a recuperação da estrutura do seu lado na sequência do compromisso assumido, nesse sentido, com o Governo português em 1994.

A única iniciativa com vista à recuperação da ponte da Ajuda foi tomada à revelia das autoridades portuguesas, no início de 2003. Os trabalhos de restauro arrancaram na margem esquerda do Guadiana (Olivença) e o estaleiro foi instalado na margem direita (Elvas), procedimento que não teve a autorização do então IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico).  

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O arqueólogo António Carlos Silva, técnico da Direcção Regional de Cultura do Alentejo, disse ao PÚBLICO que a natureza do projecto espanhol era “inaceitável” à luz das metodologias actuais de intervenção patrimonial. Previa a “reconstrução das partes derrocadas em betão armado”, ainda que recuperando a presumível forma original. O aspecto final seria obtido pelo revestimento da estrutura com “lajes de pedra”. A parte que entretanto foi recuperada na margem esquerda do rio, até à suspensão dos trabalhos, “obedeceu a este critério” observa o arqueólogo.

No levantamento dos trabalhos entretanto efectuados, o IPPAR verificou que, “apesar de não haver vestígios de qualquer actuação na estrutura da ponte da margem direita (Elvas) ou nos pilares isolados do meio do leito”, era patente “o desenvolvimento do projecto de reconstrução (sem qualquer limitação ou constrangimento) no sector oliventino da ponte, em pleno cumprimento do “Projecto de Reconstrução e Reabilitação da Ponte Antiga da Ajuda para Usos Pedonais e Turísticos” que em 2001 foi “reprovado pelo IPPAR”. Os trabalhos de recuperação foram suspensos em Junho de 2003 e, desde então, as obras não foram retomadas.

Em Maio de 2010, o PÚBLICO ouviu a directora regional de Cultura do Alentejo, Aurora Carapinha, que disse existir “um estudo prévio elaborado por uma firma espanhola” que foi objecto de apreciação em Outubro de 2008. Nessa altura, “perante várias dúvidas e reservas”, ficou acordada a sua revisão e posterior apreciação pelas autoridades dos dois países. Mas, até àquela data (Abril de 2010), adiantou Aurora Carapinha, “não foi recebida qualquer outra informação.

Também a câmara de Elvas desconhecia em 2010 o que se passava com o projecto de recuperação e com as obras. Já em 2017, o presidente da Câmara de Elvas, Nuno Mocinha, disse ao PÚBLICO, desconhecer qualquer iniciativa nesse sentido. “Nos quase quatro anos que levo de presidência, ninguém me falou da recuperação da ponte da Ajuda, só o PÚBLICO.” A mesma resposta foi dada ao autarca de Elvas pelo alcaide do ayuntamiento de Olivença, Manuel José González Andrade: “Não sei de nada.” E ambos continuam sem saber o que se vai fazer com a velha ponte da Ajuda. Decorridos 14 anos da suspensão dos trabalhos, continua esquecida “no limbo político/diplomático” lamenta António Carlos Silva.

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