Não foi apenas uma “peninha no chapéu”

Para sempre, caro amigo. O nosso PÚBLICO não foi apenas uma “peninha no chapéu”.

Nos primeiros tempos — já lá vão quase três décadas —, Belmiro de Azevedo costumava gracejar sobre o que o PÚBLICO significava para ele, dizendo: “É uma peninha no chapéu.” No dele, embora não o usasse, e no da Sonae, a empresa que foi desenvolvendo com notável sentido estratégico e com a qual o seu nome se confundiu. Mas a verdade é que a aventura do PÚBLICO foi muito mais do que isso para Belmiro, essa “peninha” de vaidade por ser dono do jornal diário de referência mais influente e respeitado do país. Foi o sentido cívico que essa aposta comportava num tempo em que a grande maioria dos empresários olhava para a imprensa como um mero eco propagandístico do seu poder. Foi a capacidade de resistir à tentação de instrumentalizar o jornal porque compreendeu que este só seria credível e respeitado se fosse genuinamente independente.

Quando tomei a iniciativa de ir ao Porto para convencê-lo a financiar o projecto já sabia, obviamente, através de contactos comuns, que ele estaria em princípio disponível para responder positivamente ao desafio. E a verdade é que, de todos os empresários do país, nenhum outro me oferecia — e a toda a equipa que “conspirava” comigo dentro da redacção do Expresso — as garantias de confiança, frontalidade, ousadia e compreensão da natureza de um projecto jornalístico inovador. A reunião foi frutuosa, franca, muito coloquial, e confesso que um dos aspectos que me surpreendeu foi a informalidade e a disponibilidade com que Belmiro se apresentou, vestido desportivamente com um blusão de cabedal e aparentemente insensível ao nervosismo que rodeava os seus colaboradores num dia em que a Sonae passava por algumas complicações na bolsa.

Mas seguiu-se um problema: depois desse primeiro passo, eu fui assaltado pelas hesitações derivadas dos fortes laços afectivos que mantinha com o Expresso, onde passara os últimos 15 anos da minha vida e me dera grandes alegrias profissionais. Decorreram longas semanas muito sofridas até que Carlos Moreira da Silva, o incansável “agente de ligação” entre Belmiro e o futuro grupo dos fundadores do PÚBLICO, me fez um ultimato amistoso mas irrecusável. O estado-maior da Sonae, com Belmiro à frente, iria encontrar-se comigo e os outros jornalistas “conspiradores” em instalações do grupo em Lisboa e a questão que me seria posta era, simplesmente, esta: ou eu alinhava definitivamente com o projecto ou este acabaria ali mesmo. Quando dias mais tarde comuniquei a minha decisão a Francisco Balsemão, proprietário do Expresso, ele perguntou-me: “Era irresistível?” Era efectivamente irresistível.

Seguiu-se então o tempo tempestuoso da gestação do jornal, com sucessivos problemas técnicos e logísticos que nos levaram a adiar o lançamento de Janeiro de 1990 para Março seguinte, motivando uma maldosa “charge” de Miguel Esteves Cardoso no Independente, em que a maqueta do PÚBLICO era transfigurada no... BONECO. Mas senti que, embora “amparados” por Moreira da Silva, nunca nos faltou o apoio e solidariedade de Belmiro (ou o tio Bel, como alguns de nós carinhosamente lhe chamávamos). O PÚBLICO pôde então ir trilhando o seu caminho e afirmar aquilo que o tornara necessário: um jornal diário sintonizado com o seu tempo, o ritmo do país e do mundo, antecipando a chegada da Internet.

Recordo este período do nascimento deste jornal porque foi aquele em que me senti mais próximo e cúmplice de Belmiro de Azevedo. Tivemos as nossas divergências posteriores, incluindo aquelas que me levaram a deixar a direcção do PÚBLICO, mas o que agora me dói foi não termos voltado a encontrar-nos antes de ele partir. Por acaso, ainda há dias pensara nisso, mas cheguei tarde.

Para sempre, caro amigo. O nosso PÚBLICO não foi apenas uma “peninha no chapéu”.

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