Portugal vai poder deixar de desperdiçar o plasma nacional em breve

Multinacional Octapharma ganhou primeiro concurso para fraccionamento do plasma. São 30 mil litros de plasma português que vão ser transformados em medicamentos hemoderivados.

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João Paulo Almeida e Sousa presidente ao IPST há um ano Rui Gaudêncio

Portugal vai poder deixar de desperdiçar o plasma proveniente das colheitas de sangue em breve. Um grande passo neste sentido é dado nesta quinta-feira: doze unidades hospitalares assinam em Lisboa um protocolo com o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) no qual que se comprometem a entregar-lhe, já a partir de Janeiro, uma parte do plasma que colhem. Desta forma passará a ser possível ter volume e escala para aproveitar o excedente de plasma português que até agora ia para o lixo ou ficava armazenado.

“Vamos dar um contributo muito forte para acabar com o desperdício de plasma” em Portugal, acredita o médico intensivista que há um ano preside ao IPST, João Paulo Almeida e Sousa, em entrevista ao PÚBLICO.

Um componente do sangue que, além de ser usado em transfusões, serve para produzir medicamentos muito dispendiosos necessários para tratar doentes em situações graves, o plasma que sobra deste processo tem ficado armazenado no IPST, onde há cerca de 140 mil unidades em câmaras frigoríficas (120 mil das quais em Lisboa). Ao mesmo tempo, Portugal vê-se obrigado a importar medicamentos derivados de plasma, que são produzidos a partir de colheitas de cidadãos estrangeiros remunerados por isso.

“Vamos avançar com tolerância zero ao desperdício de plasma”, reforça o presidente do IPST. “É uma questão estratégica: não podemos depender de terceiros para ter plasma para transfusão, até porque temos perfeita auto-suficiência [a este nível]”, sublinha o médico que aceitou o convite para presidir ao instituto numa altura em que a Operação O negativo fez saltar para a ribalta a multinacional Octapharma, que ainda domina este mercado em Portugal.

A Octapharma ficou sob os holofotes depois de o seu ex-administrador, Paulo Lalanda e Castro, ter sido detido por alegada corrupção. Este processo judicial acabou por “acelerar algo que era necessário”, a centralização da gestão do plasma no IPST, admite Almeida e Sousa, que faz questão de frisar, porém, que o instituto é “alheio” a este caso.

Destacando “o momento ímpar” que é “o de conseguir juntar o plasma dos hospitais ao do IPST”, o médico adianta que vai ser possível avançar para um segundo concurso público internacional para fraccionamento de plasma com uma maior dimensão, a lançar entre 2018 e 2019. Foi, adianta, a multinacional suiça Octapharma que venceu o primeiro concurso, lançado este ano, para um volume de 30 mil litros, que vão ser transformados em medicamentos hemoderivados. O próximo concurso chegará a 40 a 45 mil litros, calcula.

Espera-se uma poupança da ordem de 40% com este primeiro concurso — que acabou por ser ganho pela Octapharma, porque esta foi a empresa que apresentou a melhor proposta. Foi “um concurso completamente isento, rigoroso e transparente”, efectuado através do método de diálogo concorrencial e que envolveu seis empresas, tendo apenas duas apresentado propostas, refere.

Hospitais usam pouco plasma do Instituto

Mas o que é isso do fraccionamento do plasma? O assunto é complexo. “Há dois tipos de plasma: um para transfusão e o outro que é fraccionado para extracção de medicamentos, como a albumina, as imunoglobulinas e os factores de coagulação que são utilizados em hemofílicos e em queimados”, exemplifica o médico.

Em relação ao plasma para transfusão, há ainda três tipos, sintetiza Almeida e Sousa: o plasma de quarentena [que fica congelado quatro meses], o inactivado  pelo método do IPST (amotosaleno) e que é feito no instituto e o plasma inactivado pelo método solvente detergente — cuja patente é detida pela Octapharma.

O plasma inactivado pelo método da Octapharma é o que tem sido preferido pelos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (representa ainda hoje cerca de 90% do total), apesar de este ano “já ter aumentado significativamente o número de pedidos” do inactivado pelo IPST, afirma o médico. Ou seja, apesar de haver plasma português à disposição, poucos hospitais o usavam para transfusões, preferindo o produto da multinacional. 

Um dos argumentos dos hospitais tem sido o de que o método de inactivação viral patenteado pela Octapharma elimina o prião que causa a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob. Mas não há casos desta doença em Portugal desde 2012, recorda Almeida e Sousa.

Além disso, o IPST tem também desde há dois anos plasma português inactivado pelo método solvente detergente, um processo que encomendou por ajuste directo à Octapharma, a para que não houvesse ruptura de fornecimento dos hospitais. “É curioso que existindo plasma português inactivado pelo método solvente detergente, a preferência dos hospitais tivesse continuado a ser não adquirir ao instituto. É uma situação estranha”, considera.

Além do “preconceito” que parece fundamentar esta atitude, o presidente do IPST admite que a questão do hábito e de alguns critérios clínicos, que não contesta, possam pesar nesta decisão. “Mas estamos muito empenhados em que o plasma do instituto possa vir a ter uma preferência mais alargada dos hospitais. Vamos criar todas as condições, para que haja maior adesão”.

O protocolo agora assinado com os hospitais surge na sequência do despacho publicado em Dezembro de 2016 e que determinou que fosse o Estado a aproveitar o plasma colhido nas dádivas de sangue em Portugal e a assegurar que não é desperdiçado. Portugal gasta muito dinheiro a importar medicamentos derivados do plasma (48 milhões de euros em 2015).

Mas a nova estratégia implica que se crie uma estrutura de transporte, logística e armazenamento. Se hoje são os hospitais que tratam do transporte, no futuro vai ser necessário montar um sistema de recolha do plasma dos hospitais e, mais tarde, ter uma rede também para a sua distribuição, admite.     

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